"Uma comunhão de quem habita o espaço e quem constrói a obra" - À conversa com PITANGA, a artista que ilustrou a Torre A
2 de Maio de 2023, 17:49
Entre os dias 11 e 19 de março, a artista Pitanga esteve na NOVA FCSH a pintar uma ilustração alusiva ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 13 na fachada da Torre A, que ganha agora novas cores e vida. O trabalho, que se centra numa vertente do ODS 13 (Ação Climática) correspondente às migrações climáticas ou migrações associadas a desastres naturais, foi realizado no âmbito da campanha #ClimateOfChange, implementada em Portugal pelo Instituto Marquês de Valle Flôr e financiada pelo DEAR Programme (Development Education and Awareness Raising), com o apoio pelo Instituto Camões, IP.
A imagem que inspirou a ilustração é a de uma família residente no Camboja composta por uma mãe e as suas duas filhas que se vê inesperadamente desalojada após uma enchente que inundou o seu bairro. A NOVA FCSH esteve à conversa com Joana Rodrigues, mais conhecida por Pitanga, para saber um pouco mais sobre esta sua inspiração, a sua personalidade e motivações, assim como os seus futuros projetos, particularmente na relação desses trabalhos com a sustentabilidade, nos quais o desafio se coloca em dar continuidade à ilustração dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Fotografia que inspirou a ilustração do mural da Torre A
Para começar, podias explicar-nos um pouco a ideia ou a narrativa que inspirou a tua ilustração?
P: A ideia partiu de uma pesquisa que eu fiz antes de começar a obra. Foram-me enviadas muitas informações acerca do tema, que eu não sabia, não conhecia. Estive a estudar um bocadinho, estive a conhecer mais sobre esta questão humana ligada às alterações climáticas. Até então, eu não sei se vocês têm essa perceção ou não, mas estas questões das alterações climáticas afetam muito as pessoas e eu, quando pensava no planeta e na seca, raramente pensava na face humana. Raramente pensava nas pessoas que habitam nestes locais e que são afetadas por estes desastres. É devastador, é assombroso… A comunicação social não nos mostra muito esta questão humana que leva às migrações, à pobreza extrema, ao abuso, à destruição de aldeias, cidades, de populações inteiras…
Numa dessas pesquisas encontrei uma imagem que relata uma das cheias que houve no Camboja, em 2016, com uma mãe e duas filhas. Aquela imagem tocou-me muito. Pensei logo no meu filho e decidi então pegar nessa imagem como base do tema aqui para o mural.
Este mural centra-se num aspeto muito particular do ODS 13. Falando dos temas recorrentes do teu trabalho, como os podemos encontrar nesta fachada e de que forma os implementaste?
P: Não pensei muito nisso. Não tenho nada assim muito curioso para vos contar… É tudo simples, a minha vida é simples! Eu gosto muito de pensar e de utilizar esta forma de comunicar, e trabalhar assuntos que precisam de ser falados, que precisam de ser ouvidos, que precisam de ser vistos e que precisam de ser discutidos.
Portanto, os temas recorrentes vão neste sentido: apelar para a sensibilização e para questões que devem ser discutidas, mas de uma forma simples. Não gosto de fazer coisas agressivas. Gosto de fazer trabalhos com cor que consigam levar à reflexão “O que é que ela quer dizer com aquilo?” ou “O que é que ela está a tentar transmitir?”.
Considerando a tua experiência, qual é que achas que deve ser o papel das instituições e das universidades na promoção da cultura e da arte urbanas? Pensando no teu trabalho com o Instituto Marquês de Valle Flôr, com ONG’s, Câmaras Municipais…
P: Eu acho que é um caminho que se está a construir e a aceitação é cada vez maior. Cada vez mais as instituições, particulares, associações, entendem e conseguem perceber o quão rica é a arte urbana. Eu, quando lhe chamo arte urbana, não me estou só a referir à pintura. Arte urbana, como vocês tiveram oportunidade de ver, passa também pelo skate, pelo breakdance… Por todas as artes que vêm da rua e que, cada vez mais, deixam de ser consideradas marginais e passam a ser respeitadas pela sociedade. Como o Roka dizia [na conversa sobre arte pública e cultura urbana, que teve lugar no átrio da Torre B a 14 de março], pode ser usado e canalizado para coisas muito boas e muito positivas.
Cada vez mais estamos a viver numa era em que a cultura urbana é valorizada e eu sou muito grata por isso. Nunca imaginei sequer fazer o que estou a fazer. Não fazia parte dos planos. Eu não costumo fazer planos, mas é algo maravilho. Eu gosto muito de segundas-feiras de manhã. Eu acordo já a agradecer por ser segunda-feira e por me estar a levantar para ir trabalhar. Quando fazes aquilo que gostas não há segunda-feira, não há cinco ou seis da manhã. Não faço o que estudei. Estudei design e não fiz isso durante a vida toda. Espero não ter que o voltar a fazer, porque não é aí que me sinto confortável e feliz.
P: O projeto “JUNTOS” nasceu de uma necessidade que eu senti, que me levou, não sei se pela minha estética ou pelas minhas formas simples, mais infantis e com muita cor, a ser chamada para pintar em escolas. E então o que é que acontecia? Eu chegava lá, pintava e ia-me embora. Sentia aquilo tão impessoal. Sentia que devia ter falado com as crianças, que devia ter explicado o que é que estava ali a fazer.
Há uns anos atrás eu fui a Loures pintar uma escola. Nessa altura, até pedi: “Quero ir ver a escola primeiro, quero falar com alguém, para saber o que é que as pessoas querem”. O trabalho estava integrado num festival e, geralmente, durante os festivais, o artista tem liberdade total. Eu acho fixe essa cena da liberdade total, por outro lado penso que, depois de abandonar a parede, isto passa a ser vosso, porque vocês é que aqui vivem. Se isto não fizer sentido para vocês, que sentido é que vai fazer para mim? Ou seja, eu considero que tem de existir sempre uma comunhão entre quem habita o espaço e quem constrói a obra – o artista.
Em Loures, consegui fazer logo uma ligação com a escola e o resto surgiu de forma orgânica. Tinha uma professora que, todos os dias, com uma turma de pré-escolar, aparecia com os miúdos durante os trabalhos e eu todos os dias chorava. Todos os dias aquela professora me fazia chorar. Aparecia-me com aqueles miúdos minúsculos, da idade do meu filho, ou com uma música sobre o mural, ou com desenhos, … Houve um dia em que construiu uns chapéus com a cabeça de dinossauros, porque o dinossauro era uma parte importante da ilustração. Depois, aquela situação já me estava a tocar tanto que houve um dia em que eu peguei em todas as latas vazias, pedi o nome das crianças, e personalizei-as. Pintei-as uma a uma, meti o nome das crianças e fui à sala oferecer. No dia a seguir, ela construiu uma música com a história “E vamos levar a Pitanga no coração”.
A Câmara ainda fez um teatro a partir do mural. Isto porque eu queria fazer uma surpresa ao meu filho Gabriel e uma homenagem à minha mãe, que tinha falecido há uns meses de Covid. Ou seja, esta era a imagem dele e da avó e do dinossauro (ele gostava de dinossauros). E, então, escrevi uma história, para depois contar ao Gabriel. Depois de ter a história escrita, partilhei-a com a escola e com o cliente. Eles gostaram tanto que mandaram fazer um stencil daquilo. A história ficou escrita na parede e, depois, ainda contrataram uma atriz que foi representá-la. Criou-se ali uma dinâmica incrível.
Foi desde esse dia que eu pensei: “É isto! Isto é que tem de ser feito. Já que eu estou aqui uma semana a pintar, ao menos que os professores possam usar o meu tempo e a minha pintura para levarem para a sala de aula e dizerem: Está aqui uma artista, mas ela não vem aqui só pintar. Há um tema!”. Os miúdos depois fazem montes de trabalhos, os professores falam-lhes sobre temas de sustentabilidade e, portanto…
O objetivo do JUNTOS é precisamente o de sensibilizar os miúdos. De uma forma leve, divertida e artística que permita trabalhar temas mais densos.
De que forma vais agora continuar o teu trabalho de ilustração dos ODS e que resultados/impacto esperas atingir?
P: No ano passado fui convidada pelo Instituto Marquês de Valle Flôr para fazer um mural em Loures sobre um dos ODS, mas eu não sabia o que era um ODS até então. Fui estudar, fui ler sobre os ODS e pensei “Isto é brutal, isto é lindo”. Percebi que, à minha volta, quando eu falava sobre isto, havia muita gente que também não sabia o que era. Então, fiz esse primeiro mural e cada vez me fui sentindo mais próxima dos ODS e da urgência de falar sobre certos temas. No ano passado decidi que queria muito conseguir representar os 17 objetivos em murais, mas não consegui, porque nem sempre tenho liberdade de escolha dos temas.
Agora, o que é que eu pretendo com isto de pintar os ODS todos? Começa por ser um objetivo pessoal. Um objetivo, uma meta e uma coisa minha. Sem nada instituído – e tenho até 2030 para o fazer. Desta forma, tenho trabalhado, nos últimos meses, em escolas, na comunidade mais jovem e em muitas escolas azuis, projetos ecológicos. Ainda agora estou a trabalhar com uma que tem o projeto “Muros com Vida”, e eles ficaram logo todos contentes quando lhes disse que tinha este objetivo de pintar os ODS. Eu perguntei-lhes:
“-Há algum tema?
– Não.
– Então olha, eu gostava de fazer isto. É possível?”
É muito interessante, porque depois permite trabalhar o tema em sala de aula com as crianças, consegues fazer uma ponte. Conseguimos levar a arte para a pedagogia e a pedagogia através da arte. O meu objetivo é precisamente este: sensibilizar e impactar o maior número de pessoas, porque as pinturas são de acesso livre. Não estão numa galeria, não são efémeras… Quer dizer, são efémeras, mas não tão efémeras quanto uma exposição temporária, numa galeria de arte. Então no fundo é esse o meu objetivo e estou muito feliz porque são temas que eu adoro trabalhar… As cores, as formas orgânicas… Gosto mesmo muito!