"A incerteza é a medida da nossa liberdade": À conversa com David Justino

A propósito da Lição de Jubilação de David Justino, a NOVA FCSH conversou com o docente e investigador relativamente ao seu percurso académico e profissional.

Nesta conversa, David Justino recorda os seus mentores na Sociologia e na academia, traçando uma resenha do passado e do presente do Departamento de Sociologia da NOVA FCSH, o seu papel enquanto figura relevante para o desenvolvimento da Educação em Portugal e desvenda-nos um pouco acerca do tema da sua Lição de Jubilação. Manifestando que será “um académico fora da academia”, David Justino evidencia verdadeiramente a sua vocação como homem das Ciências Sociais que não se despede da sua ligação aos projetos de investigação.

Quais são os pontos que destacaria na sua carreira, enquanto docente e investigador da NOVA FCSH? 

DJ: Eu fui contratado como assistente a convite do Professor Magalhães Godinho, no dia 1 de janeiro de 1981, e estava precisamente a preparar o meu Doutoramento. Aliás, quando o Professor Magalhães Godinho me telefonou, eu estava em Paris. Ele perguntou-me se eu queria ser seu assistente e vir para a Universidade NOVA, porque eu já o era no Instituto Superior de Economia. É claro que aceitei logo e, a partir de 1 de janeiro, vim de Paris, nem cheguei a acabar o período da bolsa. Foi a partir dessa altura que comecei logo a trabalhar no Departamento de Sociologia e continuei a preparar o Doutoramento, com orientação científica do Professor Magalhães Godinho.

Eu tinha sido aluno de um curso de pós-graduação na NOVA, ainda a NOVA funcionava nos Olivais e já conhecia o Professor Magalhães Godinho. Era aluno finalista de Economia, ele estava no seu gabinete na Avenida da República e foi aí que o conheci em 1975.

Digamos que foi um percurso que, por vezes, não foi fácil, porque eu venho da Economia e, aqui, ia ensinar futuros sociólogos. Isso conduziu-me a um processo de abertura. Não se pode dizer de atualização. Foi mesmo abertura sem atualização, porque eu precisava de saber, no fundo, qual era a estrutura do curso e do programa.

Comecei por lecionar Introdução à Economia, no primeiro ano. No segundo ano, dei Sociologia e Economia Históricas. Na altura, chamava- se Economia e Sociologia Históricas onde tinha como alunos uma grande parte dos colegas que tenho agora: o Professor Luís Baptista foi meu aluno nessa cadeira, a Maria João Valente Rosa, o Professor Manuel Luís Lisboa, o Miguel Chaves também. Ou seja, eu diria que a maioria dos docentes do Departamento de Sociologia foram meus alunos. E, de alguma forma, que a primeira experiência correu bem, porque consegui trabalhar com eles um conjunto de autores e de temas de que eles gostaram, julgo eu. Pelo menos eles têm-me sempre dito isso. Essa foi a minha entrada mais forte na área da Sociologia.

Já defendi aqui a minha dissertação de Doutoramento, no chamado Anfiteatro 1 do Edifício B1. Pude contar com um júri de grande qualidade, o Professor Manuel Nazareth, Nuno Valério, o Professor Romero de Magalhães, o Professor Magalhães Godinho, o Professor Manuel Gusmão, que presidiu… Foi uma sessão interessante porque já tínhamos uma relação de amizade, mas amigos, amigos, negócios à parte.  Aliás, dá-me a sensação que quanto mais amigos fôssemos, mais eles me picavam. Defendi duas teses: uma tese principal e uma tese complementar. A tese principal foi depois premiada pelo Prémio Calouste Glubenkian de Ciência e Tecnologia. Enfim, não podia ter corrido melhor. 

Mantive sempre esta presença na NOVA FCSH. Só interrompi a minha permanência no Departamento e na Faculdade quando fui para deputado. Estive três anos como deputado e dois anos como Ministro da Educação. Logo que saí do Ministério, telefonei ao Professor Jorge Crespo, se não estou em erro, era o Diretor, e disse-lhe “Olha Jorge, eu vou regressar à Faculdade”, “Ah então não ficas como deputado?”, “Não, não, vou só completar o mandato e vou de imediato. Quero regressar já à Faculdade.”. Aliás, ainda trabalhava como deputado e abri um seminário livre precisamente aqui. 

David Justino

 

Por que razão quis regressar? 

DJ: Porque é esta a minha vida. Eu costumo dizer e vou dizê-lo na lição: eu sou um académico que dá uns pontapés na política e aquilo que eu noto é que, com a idade, a gente vai ganhando experiência, enfim, começamos a ser mais ponderados e a deixar de dar pontapés. E, portanto, a política afasta-se e continuo a ser um académico. Quer dizer, mesmo terminando agora com a docência, vou continuar a fazer a investigação, porque é isso que eu gosto de fazer, é isso que eu quero fazer. Se a saúde me autorizar, não é aqui que eu vou parar, porque sempre fiz investigação em vários domínios e gosto, gosto de fazer investigação, gosto de escrever.

O grande problema é que hoje em dia ninguém lê os artigos. Depois há uns que são mais citados, outros menos citados. Mas eu prefiro fazer um bom livro, do que propriamente publicar cinco bons artigos. O livro que vou publicar agora é um conjunto de vinte e três ensaios que me deu muito mais prazer a elaborar e acho que são muito mais importantes do que, eventualmente, não sei quantos artigos que pudesse escrever. Ou seja, eu podia transformar aqueles ensaios em artigos e batia as pontuações todas, mas não é isso que quero fazer. Eu continuo a ser muito fiel à ideia do livro.

Aquilo que eu noto também é que hoje se dá muita importância à quantidade de artigos e raramente os júris leem os artigos e analisam a sua qualidade. Um livro já não é assim. O livro tem que ter coerência, uma visão, uma perspetiva, um quadro teórico razoável. E, nesse aspeto, eu ganhei aqui, na NOVA FCSH, a perspetiva transdisciplinar que eu sempre defendo. Ou seja, no fundo, sou economista de formação, sociólogo por adoção e continuo a ser um historiador por opção. Há uma coisa a que o Professor Magalhães designava de Economia e Sociologia Históricas, é essa a minha área.  

Sem limites, estudo aquilo que os problemas me sugerem. Vou mais atrás ou mais à frente consoante seja necessário. Mais sociológico ou menos sociológico, mais economista ou menos economista, em função do problema que quero analisar. Eu tenho, depois, uma especial predileção pela Geografia Humana, um pouco na esteira de Orlando Ribeiro, por exemplo, e muito na esteira de Magalhães Godinho e de Braudel como historiadores.

Se me perguntarem: “Qual é o seu quadro de referência teórico?”, não o tenho. Eu vou buscar os quadros teóricos que me sejam úteis para resolver o problema que tenho e é na formulação dos problemas que nós conseguimos depois abrir para as diferentes resoluções.  

Neste último livro que vai ser publicado, tem de tudo lá: tem História, Sociologia (é predominante um livro de Sociologia), tem Ciência Política, Relações Internacionais, Políticas Educativas, Demografia, … Eu vou buscar aquilo que for necessário e isso dá-me um enorme prazer, porque é assim que vamos aprendendo e, acima de tudo, aprendendo a respeitar também os contributos que vêm de fora da nossa área. Portanto, eu não sou um especialista. 

O Professor Gusdorf dizia que um especialista é uma pessoa que sabe cada vez mais de cada vez menos. Eu costumo dizer: “eu quero saber um pouco mais de cada vez mais”. Assim sendo, tenho esta perspetiva mais eclética e não direi que é generalista, não tem a ver com generalismo, mas sim com ecleticismo. 

Acima de tudo, gosto muito trabalhar com os clássicos. Mesmo para problemas muito atuais, não há nada que já não tivesse sido pensado. Darmos outras visões, outras dimensões aos problemas, que, à primeira vista, não abordamos. Esta abordagem é Godinho – é a ele que devo a minha formação e foi ele quem mais me influenciou, que me formou.  

O professor assumiu a pasta da Educação em Portugal durante 2 anos. Quais são as principais mudanças que verificou, no ensino, desde que iniciou a sua carreira até hoje?

DJ: Todos nós, nomeadamente no Ensino Superior, tendemos a tentar perceber onde é que estamos. Eu tinha essa perspetiva, até que, em 1986, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa me convidou para ser porta-voz dele para a área da Educação. Isso obrigou-me a entrar nas Políticas Educativas. Essa foi a minha primeira entrada.

Em 1999, já com Durão Barroso a liderar o PSD, eu fui eleito deputado e fiquei como ministro-sombra da área da Educação e depois, obviamente, fui dos poucos ministros-sombra que se tornou ministro.

Agora, o que é que mudou na educação? Eu acho que a educação em Portugal teve um progresso assinalável. Temos populações mais escolarizadas, o fenómeno do abandono foi reduzido a um mínimo. Entre 2000 e 2015, passámos da cauda dos países da OCDE para a média no que diz respeito aos resultados dos alunos, nomeadamente nos testes internacionais e isso foi um período muito bom, em grande parte porque os ministros que por lá passaram não quiseram romper com o ministro anterior. Ou seja, em muitos casos havia políticas às quais foi dada continuidade.  

Eu tive dois anos e pouco no Governo e o meu trabalho foi fundamentalmente o de conceber como é que deveria ser feita a reforma da educação. Se o ministro que vem a seguir quer dar cabo daquilo que vem de trás, isso nunca mais tem fim. A Professora Maria de Lurdes Rodrigues, de certa forma, deu continuidade a um conjunto de projetos que eu tinha lançado e assim sucessivamente. Isso permitiu que os resultados internacionais tivessem sido bons e que os indicadores de desempenho do sistema educativo tivessem sido bons também. Eu agora já não tenho a mesma perceção. Enfim, tenho uma preocupação maior sobre o estado da educação, porque, de alguma forma, o que está a ser feito nos últimos anos é precisamente o contrário daquilo que foi feito antes. Nós precisávamos de ter mais continuidade. Eu digo isto sem desprimor para quem lá está, mas é uma constatação de clara divergência. São opções legítimas, mas não me peçam para concordar com elas, porque não concordo.  

Há uma frase de Aristóteles que para mim é muito orientadora: a educação é uma árvore em que as raízes são amargas, mas os frutos são doces. Há gente que quer apenas comer as raízes doces e arriscam-se a ter frutos amargos. Ou seja, nada de bom na educação se faz sem disciplina, sem trabalho, sem empenho, sem exigência e qualidade. Quando começamos a baixar os níveis de exigência, não estamos a ajudar os alunos, estamos a enterrá-los. Os meus alunos dizem-me que eu era muito exigente, mas agradecem-me por tê-lo sido. E eu faço-o também por respeito aos alunos. 

Eu poderia ser um professor altamente simpático, mas não é esse o meu papel. O meu papel não é ganhar simpatias, mas sim motivar. É, acima de tudo, ajudar a encontrar soluções para os problemas que são colocados. Há aqui um fator de motivação que é muito importante. O papel do professor é, não só ensinar, mas também motivar e fazer aprender. Um professor que ensina e não faz aprender é um aborrecimento. Eu tenho que ter essa dupla função: primeiro, preciso de ensinar, mas acima de tudo também tenho que criar condições para que os alunos gostem de aprender. O professor é isto.

 

 

Focando o Ensino Superior e tendo formado uma geração de professores que integram o Departamento de Sociologia, agora que vai proferir a sua Lição de Jubilação, como vê o futuro do ensino da Sociologia na NOVA FCSH? 

DJ: O Departamento de Sociologia vive de três pilares fundamentais: o pensamento sociológico que, no fundo, é herdeiro de Sedas Nunes; o outro, que é uma maneira de pensar as metodologias, a capacidade de se introduzir pelas outras Ciências Sociais, etc., que é uma maneira de pensar herdada de Magalhães Godinho; e a Sociologia Aplicada, muito em torno da Demografia, dos Estudos da População, herdeiro do Professor Manuel Nazareth. Há uma característica que para nós é muito importante: uma sólida formação teórica. 

A teoria não nos dá respostas, mas ajuda-nos a pensar. Eu dizia aos meus alunos que queriam ter uma formação mais prática: “Tudo bem, mas vocês quando saírem daqui vão para o mercado de trabalho e está um computador a fazer isso. O fundamental é ter uma formação teórica e de reflexão, saber pensar, porque é isso que o computador não consegue fazer.”. O computador não sabe pensar, apenas opera. Mesmo a inteligência artificial não tem capacidade de abstração, há um conjunto de operações que são estritamente humanas. 

Hoje fala-se muito do problema das competências. Os alunos têm que ter competências para entrar no mercado de trabalho, etc. O que eu costumo de dizer é que nunca vi ninguém ser competente, sendo ignorante. E, portanto, um ignorante nunca pode ser competente. O fundamental é precisamente o conhecimento.  Depois, tem que se desenvolver a capacidade de mobilizar esse conhecimento para resolver problemas concretos. Se não tiver maneiras de pensar ajustadas, sólidas e rigorosas não consigo ser competente e, portanto, é esta linha que o Departamento tem vindo a seguir.

Alguns dos Sociólogos da NOVA FCSH estão em lugares de muito destaque. A gente vai ver quem são os diretores, quem são os editores de jornais, comunicação social, televisão, etc. vêm todos daqui.  

Para já, este é um caminho diferente dos outros. Em segundo lugar, é um caminho sólido e, portanto, só temos que o melhorar e potenciar, não abdicando desse legado, mas tentando inovar, ajustar, melhorar, responder melhor. Penso que é esse o grande desafio e, até ver, o Departamento de Sociologia está em condições de o fazer. 

Agora, não posso falar do futuro. Os que cá ficam é que sabem.

 

 

O Professor escolheu como tema da sua Lição de Jubilação “A nova Era da Incerteza”. Porquê?

DJ: Em primeiro lugar, o problema da incerteza permite ter uma abordagem transdisciplinar. Mas não é só por ser transdisciplinar, é também um problema atual que vai desencadear outros problemas. As pessoas deixaram de ter certezas. A modernidade criou a ilusão de que tudo é resolúvel através do pensamento científico. A própria ciência não é definitiva, não é absoluta. Portanto, a ciência, na sua forma de desenvolvimento, anda às cavalitas do que se descobriu anteriormente e, em segundo lugar, não é conhecimento absoluto e definitivo.

Quando não há cultura científica, as coisas são vistas sempre a preto e branco e a pior coisa que pode existir é um mundo a preto e branco. Essa cisão não existe.

Há um ditado português: “o futuro a Deus pertence”. Esta é a visão tradicional, ou seja, nós não podemos prever o futuro. O outro lado, o da hiperracionalidade, é que o futuro é sempre uma projeção que se faz com estimativas. Sinceramente, isso é verdade quando não estamos em contextos de incerteza.  

O problema da incerteza foi trabalhado, em primeiro lugar, na Economia e nas Teorias da Decisão. Ou seja, como é que um empresário decide quando tem um problema que tem que resolver? Naturalmente, não vai buscar o cálculo de probabilidades para fazer contas. Ele vai ver qual é a viabilidade e estuda toda a informação, mas há uma parte da informação que não tem e que tem a ver com fenómenos contingentes, que não prevê. Quando esses fenómenos tendem a repetir-se de forma mais frequente, gera maior incerteza. E isso quer dizer o quê? Quer dizer que nós, na Estatística, por exemplo, trabalhamos muito sob as manchas de variância e sob padrões. A investigação científica anda sempre em busca de padrões, o grande problema são os outliers, ou seja, aqueles que estão fora do padrão.

Num sistema estático, podemos dizer que os outliers não contam, apenas entram na margem de erro. Num sistema dinâmico, o comportamento de um outlier pode determinar uma alteração no comportamento padrão. Em sistemas abertos, a interação é muito grande e, portanto, temos que estar preparados para lidar com a incerteza. Aqueles que não estão preparados geralmente deixam de ter confiança nas instituições e tendem a adotar concessões mais dogmáticas, porque há uma obsessiva busca pela certeza. As pessoas precisam de repousar sobre aquilo que é certo e é expectável. Quando aparece uma sucessão de casos que não são expectáveis, as coisas tornam-se mais complicadas. Isso tem que conduzir a alguma humildade por parte dos cientistas, reconhecendo que o futuro não é tão previsível quanto fazem crer. Ou seja, há uma parte das coisas que permanecem ou mudam muito lentamente e é sobre isso que temos de nos centrar.

Excerto áudio da entrevista a David Justino

Alexis de Tocqueville dizia uma coisa muito interessante: “Não me lembro de nenhum autor que tenha previsto as grandes alterações na História”. As grandes alterações não são previsíveis e hoje vivemos numa época de oráculos e de profetas em que toda a gente quer dizer como vai ser o futuro e é precisamente porque ignoram o problema da incerteza. Viu-se agora uma pandemia de que não se estava à espera, uma guerra de que não se estava à espera e uma inflação que também se dizia que não se estava à espera.  

Voltámos a ter as limitações das sociedades tradicionais: a Fome, a Peste e a Guerra.  

Como é que nós lidamos com a incerteza? Ao contrário do que as pessoas possam dizer, a incerteza não é um mal. A incerteza é a medida da nossa liberdade. Como é a medida da nossa liberdade, eu acho que a nossa atitude para ter certeza tem que ser mais racionalizada, de estar preparado para lidar com os fenómenos contingentes. E isso é possível. Agora, não é possível prevê-los. Toda a gente anda a dizer que Lisboa vai ter um terremoto. Quando e como é que ninguém sabe. Temos que estar prevenidos para isso, mesmo que nos próximos anos nada o indique. É possível prever? Não, não é. Era possível prever estas cheias? Não, não era. 

É em torno disto que eu vou falar. 

O Professor referiu que vai publicar um livro de ensaios. Agora que se vai despedir do ensino, quais são os seus próximos projetos?

DJ: Eu tenho trabalho para dois, três anos. Vou continuar a fazer a investigação. Vou fazê-la fora do meio académico, mas vou continuar a colaborar com as equipas que têm trabalhado comigo até agora e que estão aqui, no CICS.NOVA, são professores e investigadores aqui.  

A única coisa que não posso fazer é voltar à docência e ter responsabilidades a respeito de cargos, mas não me imagino a deixar de trabalhar. Tenho muita coisa para fazer, tenho compromissos assumidos e é isso que eu vou continuar a ser: um académico fora da academia.  

David Justino

 

David Justino irá proferir a sua Lição de Jubilação no dia 24 de janeiro de 2023 pelas 18h no Auditório da Reitoria da Universidade NOVA de Lisboa. A inscrição poderá ser realizada aqui.