Fragmentologia ou a arte de fazer puzzles com música

Já alguma vez teve um disco de vinil tão danificado que já nem consegue escutar o som? E um puzzle onde faltam metade das peças? Não se pode dizer que seja exatamente o caso do trabalho de investigação que está a ser desenvolvido pela equipa dirigida por João Pedro d’Alvarenga, mas a comparação até faz algum sentido quando aplicada a “fontes musicais fragmentárias e incompletas da época medieval e início da época moderna”, explica o investigador do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM). Autor do projeto “Textos e vozes perdidas e achadas. Recuperação, reconstituição e recriação de fragmentos de música (c.1100-c.1600)”, simplesmente chamado Lost&Found, há quase três anos que o investigador e a sua equipa perseguem “conjuntos incompletos de fontes musicais com o objetivo de lhes conferir significado além da sua condição de artefactos culturais fragmentários”, explica. Desta forma, obras musicais incompletas ganham novo significado e novas interpretações, tanto no campo da história como da musicologia.

Financiado em quase 250 mil euros pela FCT e com data de conclusão apontada já para fevereiro de 2024, o projeto foca coleções musicais portuguesas truncadas ou incompletas que, ao serem reconstituídas, trazem “uma compreensão renovada destes produtos culturais e do seu significado”, avalia o investigador. “Os fragmentos não são apenas os remanescentes de antigos códices, mas também representam os vestígios das circunstâncias que determinaram a sua criação. Assim, o estudo de conjuntos de fragmentos com a mesma proveniência ao longo de um extenso período cronológico visa analisar e reconstruir um contexto completo. Isso leva a um melhor conhecimento de um determinado uso litúrgico, revela as origens de textos, fórmulas, cantos e a forma como foram escritos, expondo também a rede de conexões entre tradições centrais e laterais e os processos de continuidade e mudança”, enumera. Trata-se de um trabalho de “recriação, que é também um processo de aprendizagem”.

Claro que, no final, a intervenção do CESEM pode “gerar versões concorrentes das mesmas obras”, algo assumido de forma clara no projeto e que João Pedro d’Alvarenga valoriza por ser comparável “às diferentes interpretações de uma performance real”. Além disso, o facto de a música ser valorizada acrescenta sempre conhecimento à sua vertente enquanto documento histórico.

Um dos documentos preservados na Biblioteca da Universidade de Coimbra

Fontes e estratégias

O projeto Lost&Found segue duas linhas de investigação paralelas: uma primeira relacionada com fragmentos musicais litúrgicos medievais; e outra, a segunda, com fontes incompletas de polifonia e incluí a reconstituição de partes vocais. Estão, respetiva e simplesmente, classificadas como “Linha 1” e Linha 2”.

Em pormenor, a primeira envolve 264 fragmentos medievais de cantochão (forma de canto litúrgico utilizado na tradição da música sacra cristã, em particular durante a Idade Média) de finais do séc. XI aos finais do séc. XVI, atualmente preservados em instituições patrimoniais de Coimbra. Trata-se de documentos valiosos para a equipa da NOVA FCSH, já que proporcionam insights sobre as práticas musicais e litúrgicas da época, auxiliando a reconstrução do contexto histórico e cultural em que foram criadas e utilizadas. A metodologia de trabalho passa pelo uso de ferramentas digitais que facilitam a inventariação e estudo do conteúdo de todos os fragmentos deste conjunto, incluindo características da notação, estilos de escrita, decoração e uso litúrgico.

Já a “Linha 2” pretende recriar obras polifónicas que estejam incompletas por falta de partes vocais através da reconstituição dessas partes, com a análise de peças completas, comparáveis em técnica e estilo compositivos, a servir de bússola. Concentra-se especificamente em 45 motetos atribuídos a Francisco de Santa Maria, religioso e compositor  do período do Renascimento, que sobrevivem em manuscritos do Mosteiro de Cónegos Regrantes de Santo Agostinho de Santa Cruz, em Coimbra. A sua seleção para este trabalho justifica-se por constituírem um conjunto de obras “exemplar da composição local de música polifónica nas décadas de 1560 e 1570”, explica a página do projeto. Aqui a metodologia “baseia-se numa análise preliminar de peças completas comparáveis em técnica e estilo compositivos, o que possibilita a constituição de um léxico de estruturas polifónicas”. Esse léxico, criado com recurso a ferramentas inovadoras assistidas por computador, possibilitam a identificação de um determinado conjunto de características. Por exemplo, “tipos de cadências, progressões intervalares e padrões de imitação”, que vão dar pistas “para a reconstituição das vozes perdidas”, assegura o investigador.

O projeto beneficia assim das diferentes áreas de especialização do Grupo de Estudos de Música Antiga do CESEM e da estabilidade da sua equipa, que há anos trabalha em estreita cooperação entre investigadores juniores e seniores, com um registo de publicações internacionais significativo. Incluir jovens no trabalho científico “proporciona-lhes também formação em áreas basilares como a codicologia e a paleografia, os estudos de fontes e repertórios, a análise musical e a musicologia digital”, enumera João Pedro d’Alvarenga. Adicionalmente, possibilita também estabelecer uma ponte entre os estudos de cantochão e de polifonia, habitualmente desligados, dando voz a um conjunto de fontes cuja condição fragmentária leva ao seu silenciamento na Histórica.

À direita a imagem de uma das obras originais atribuídas a Francisco de Santa Maria, religioso e compositor  do período do Renascimento

Fim à visa

Com a data de término do projeto à vista no calendário, já faz sentido fazer um balanço. O trabalho levou à criação de 122 registos novos ou revistos na plataforma Portuguese Early Music Database (PEM), correspondendo a 169 fontes maioritariamente fragmentárias, à edição de 16 obras polifónicas completas, a reconstituição de 2 motetos, a realização de um colóquio internacional, a apresentação de 28 papers em conferências nacionais e internacionais e, finalmente, a um dossier temático a incluir na Revista Portuguesa de Musicologia. Daqui a cerca de um ano será também publicado o livro “Fragmenta Musicae”. 

Este projeto não é apenas uma viagem ao passado musical de Portugal, mas uma ponte entre diferentes eras, conectando o antigo ao moderno, e, acima de tudo, dando voz a fragmentos esquecidos que, nas páginas da História, merecem ser ouvidos. O resgate de melodias perdidas não é apenas uma busca pela “autenticidade histórica”, mas também um testemunho da música como veículo da criatividade através do tempo.

Frag-men-to-lo-o-quê?

Fragmentologia. Seis sílabas complicam a palavra, mas não o significado, que alude a toda a ciência relacionada com a reconstituição de fragmentos físicos ou digitais. Trata-se uma área emergente mas fundamental para a compreensão de manuscritos musicais incompletos que, nos últimos 20 anos, tem sido desenvolvida através de múltiplas ferramentas online no âmbito das Humanidades Digitais; por exemplo, o International Image Interoperability Framework (IIIF), relacionado com a componente da imagem digital, ou a Digipal, plataforma que estuda manuscritos medievais. Em todos os casos, trata-se da aplicação de programas inovadores de tratamento de imagem que podem ser adaptados ao restauro digital de fontes severamente danificadas.

Entre vários projetos recentes no domínio da fragmentologia destacam-se, por exemplo, as iniciativas europeias Virtual Manuscripts, resultado de um projeto desenvolvido na Universidade de Bergen, e o Fragmentarium, um laboratório digital de estudos de fragmentos medievais suíço. Especificamente na área da reconstituição de fontes de polifonia incompletas vale a pena referir o Tudor Partbooks, conduzido pelas universidades de Oxford e Newcastle, e o Lost Voices, desenvolvido pela universidade de Tours e o Haverford College.

Desde 2010 que também o CESEM dá o seu contributo para a área através da criação e gestão da Portuguese Early Music Database (PEM), um recurso digital que disponibiliza em livre acesso imagens, descrições e índices completos de manuscritos de cantochão e polifonia preservados em Portugal e em localidades espanholas vizinhas. A PEM é membro fundador da Cantus Index Network.

Cópia de um dos documentos disponíveis na página de internet do site fragment.uib.no (ver texto ao lado), desenvolvido na Suiça. Neste caso trata-se de um documento do final do século XIII

À esquerda João Pedro d’Alvarega, investigador do CESEM e responsável pelo projeto “Textos e vozes perdidas e achadas. Recuperação, reconstituição e recriação de fragmentos de música (c.1100-c.1600)”

 

Uma das obras reconstruídas foi interpretada, em julho de 2023, na Igreja da Misericórdia de Cascais pelo ensemble Arte Minima, “um projeto dedicado à interpretação de música dos séculos XV, XVI e XVII, com especial relevo para a produção musical portuguesa desses períodos”, lê-se no website do grupo, em www.arteminima.org/. 
O conjunto de artistas é dirigido por Pedro Sousa Silva, Professor Coordenador da ESMAE, I.P.Porto, membro integrado do CESEM e membro da equipa do projeto Lost&Found.

 

Bilhete de identidade

Nome: Textos e vozes perdidas e achadas. Recuperação, reconstituição e recriação de fragmentos de música (c.1100-c.1600) – Lost&Found

Equipa: João Pedro d’Alvarenga (PI) | Manuel Pedro Ferreira (Co-PI) | Andrew Woolley | Alberto Medina de Seiça | Bernadette Nelson | Carla Crespo (2023-) | Diogo Alte da Veiga | Elsa De Luca | Giulio Minniti (2023-) | Kristin Hoefener | Maria Luísa Castilho | Nuno de Mendonça Raimundo | Océane Boudeau | Pedro Sousa Silva | Rui Araújo | Zuelma Chaves. Giulio Minniti (BIPD 2021-23) | Carla Crespo (BI 2021-23) | Tiago Gomes de Sousa (BI 2021-23) | Inês Trindade (BI 2023-) | Eva Mathilde Ribeiro (BII 2021-22) | Pedro Guedes Marques (BII 2023). 

Duração: 36 meses

Entidade financiadora: Fundação para a Ciência e a Tecnologia (244 760 €)