"Paredes brancas, povo mudo" - As Underdogs sobre o mural de Salgueiro Maia
As artistas da Underdogs da esquerda para a direita: Tamara Alves, Mariana Malhão, Moami e Petra Preta.

Um mês após a inauguração do Mural Salgueiro Maia, cuja intervenção levou à sua revisitação artística, a NOVA FCSH partilha uma conversa com as artistas responsáveis pela renovação do mural da Avenida de Berna ainda antes do término da obra.

As artistas da plataforma cultural Underdogs – Mariana Malhão, Moami, Petra Preta (nome artísitico de Sara Gonçalves da Graça) e Tamara Alves – falam sobre o processo colaborativo que levou à criação do mural, os diferentes elementos e valores que o compõem, sobre a herança do antigo mural criado também pela Underdogs e sobre a expectativa da receção desta obra.

 

Leia aqui a entrevista completa:

 

Podiam apresentar-se, falar um pouco sobre o vosso trabalho, estilo e aquilo que melhor vos define?

Petra Preta (PP):  Sou a Petra Preta. Sou uma artista transdisciplinar, estudei teatro, sou atriz e as áreas em que me foco mais são, para além do teatro, a pintura, o desenho e a escrita e acabo por cruzar tudo um bocadinho na performance. Para além disto, também trabalho em arte e educação com um público infantojuvenil.

O meu trabalho foca-se maioritariamente em processos, questões e demandas identitárias. Abordo bastante o tema do colonialismo no meu trabalho, sendo uma mulher negra, nascida em Portugal e, portanto, os meus trabalhos acabam por ser um processo para mapear escuras e criar imaginários seguros e de empoderamento.

Tamara Alves (TA): O meu nome é Tamara, sou artista visual e faço muitos murais. Tenho vindo a representar uma nova forma de feminilidade: sei que na história da arte a mulher era muitas vezes representada apenas como musa submissa à espera do olhar do observador ou do homem. Eu tento desconstruir essa narrativa e fazer novas representações. Sendo mulher, tento representar mulheres que estão despertas, que são empoderadas e que controlam a sua própria narrativa.

Moami (M): Olá, o meu nome é Moami, aliás, o meu nome artístico, mas chamo-me Stelvia. Sou street artist e adoro letras. O meu trabalho é muito de criar as minhas próprias personagens e trabalhar sobre isso – sonhos encantados, sonhos que eu vou descobrindo, ouvindo também por algumas pessoas. Vou criando então essas histórias para que seja mais apetecível e mais doce, trabalhando também os detalhes.

Mariana Malhão (MM): Olá, sou a Mariana. Sou ilustradora, faço tanto trabalho comercial como autoproposto. Invento também as minhas histórias, as minhas personagens, às vezes paisagens imaginárias, figuras de animais misturadas com pessoas. 

 

Como foi o processo criativo para chegar ao desenho final do mural?

M: Eu acho que o processo foi muito interessante. Primeiro, porque estávamos a trabalhar online e isso, para mim, foi muito desafiante, tal como saber que ia trabalhar com mais três mulheres que já conhecia, menos a Mariana, que é como se tivesse conhecido já há muito tempo. Acho que isso criou uma expectativa muito boa para mim, porque sou sempre muito “não, pintar com outras mulheres não, é muito complicado para mim”, mas com elas foi muito fácil de entender e agradeço-lhes muito isso. Tive tempo para perceber que existem pessoas que têm o mesmo pensamento eu: “vamos fazer e tem de ser agora”. Então, com elas está a ser muito fácil trabalhar, não só por já as conhecer há algum tempo, mas por trabalhar isso em mim.

TA: Eu acho que o processo foi relativamente fácil. Acho que encaixámos todas muito bem. É difícil trabalhar, fazer uma peça a quatro, porque há sempre o perigo de não conseguirmos. Acho que é importante que cada uma tenha a sua própria identidade no trabalho e que não sinta que há elementos que se destacam mais que outros e acho que conseguimos facilmente olhar para o projeto, identificar o estilo e a identidade de cada uma. Isso é o mais importante. E foi muito fácil.

 

Como decorreu o trabalho colaborativo de reflexão coletiva sobre os elementos que estavam a pintar?

PP: Começaram a aparecer propostas e eu lembro-me de um desenho da Mariana que já me deu a sugestão de como é que eu poderia encaixar a minha ideia. A partir do momento em que recebi o convite e antes de termos falado todas, já comecei a magicar: “O que é que me interessa? O que é que eu gostaria de falar, trazer para este mural?”. Portanto, já estava um bocado nessa expectativa de que, por ser um mural feito a quatro, tivemos de arranjar formas de encaixar e, aí, acho que a Tamara já disse tudo. Acrescento só que não tenho esta experiência de pintar murais em grande escala e então, nessa parte do processo, foi muito bom conhecer melhor pessoas que já conhecia, conhecer colegas novas e trabalhar em conjunto. Tem sido assim uma aprendizagem logo desde o trabalho online.

MM: No momento em que recebemos a proposta, confesso que fiquei assim, meio tensa, do género “Somos tão diferentes, o trabalho é tão diferente, como é que vamos fazer com que isto funcione?”. Mas pronto, fomos enviando o que já tínhamos feito e também milhares montagens diferentes no computador. Fomos falando umas com as outras, dando opinião sobre cores e onde é que íamos pôr as personagens. Às vezes, também tinha algum receio em mexer demasiado nos trabalhos delas, de cortar ou mudar. Acho que, no final, acabámos por conseguir um desenho equilibrado e em que se nota o trabalho de cada uma. Passa a mensagem que nós queremos.

A figura de Salgueiro Maia constitui um dos principais focos das celebrações de 50 anos do 25 de abril. Qual foi o processo para integrar o papel histórico do capitão nos vários elementos da obra?

TA: Acho que acabámos por pegar um pouco na estética do mural anterior e centrar o Salgueiro Maia. A fotografia foi cedida gentilmente pelo fotógrafo Alfredo Cunha e coube-me a mim essa parte difícil de a tentar recriar de forma o mais realista possível. É uma figura importante e estamos a homenagear também o passado e o capitão, mas não é a figura mais importante. Acho que todos os símbolos que estão a ser representados pelas minhas colegas têm um impacto muito forte também, têm um discurso forte e importante para os dias de hoje.

 

Porque é que decidiram fazer este contraste entre elementos figurados e o realismo na figura do Salgueiro Maia?

TA: Eu ia manter-me fiel à fotografia, por respeito ao fotógrafo. Também acho que depende da identidade criativa de cada uma. Se houvesse elementos mais realistas eles iriam aparecer. Se fosse esse o desejo. A única coisa que eu acho que concordámos todas foi mantê-lo a preto e branco, o único elemento que o destaca. 

 

Um dos fenómenos interessantes da obra anterior foi o facto de ter sido elevada pela comunidade a uma posição que já poderíamos chamar de “património”. No entanto, sabemos também que a Arte Urbana é normalmente caracterizada pela sua efemeridade. Como vêm esta dualidade e de que forma trabalharam com ela nesta revisitação?

M: A outra obra era muito importante. Esta também vai ser e vai durar vinte anos, e não dez, não é? (risos). Vai durar vinte anos e digo isso com convicção. Espero que possamos fazer um bom trabalho e que seja bem representado.

TA: A efemeridade faz parte. Eu lido bem com isso, com essa melancolia, com a passagem do tempo. O 25 de Abril é hoje, mas foi passado, é presente, é futuro. Este mural, com as nossas ideias, as nossas palavras e o nosso discurso é hoje e poderá vir a ser um outro no futuro.  Vai ser absorvido, vai viver com a cidade, vai viver com as pessoas e, futuramente, surgirá outro mural com outros discursos, outros símbolos. Eu acho que faz parte.

PP: Exato. Esta questão da Arte Urbana em específico já lida bastante com rapidez, ser algo efémero, e também esta revolução foi um momento que se dá num segundo. No entanto, existe sempre um trabalho por trás que leva até esse momento e, depois, um trabalho de manter esse momento ou trazer aquilo pelo o qual nos revolucionámos e lutámos. Fazê-lo permanecer. Hoje estamos aqui a trazer estes discursos que nos rodeiam, que estão nas nossas cabeças e que estamos sempre a ouvir todos os dias e a refletir. 

Espero mesmo que daqui a vinte anos, quando esses paradigmas voltarem a mudar, que os muros estejam disponíveis para outras vozes, para outros corpos poderem também ocupar as paredes e voltar a pensar sobre o que é que foi a revolução e como é que mantemos viva essa chama.

MM: Uma pessoa já faz a saber que vai acabar, até podem pintar por cima. O mural é a nossa perspetiva mas já não é nosso. Está na rua e pertence a toda a gente. Por isso, também lidamos bem com isso. Imagino que os anteriores criadores também lidaram bem com isso e, hoje em dia, fica tudo para sempre guardado na internet, em fotos. Mas a ideia é mesmo esta: olhar com outros olhos. É a efemeridade do pensamento sobre as coisas, sendo que algumas se devem manter – as ideias de liberdade, de união, de força conjunta, que tentámos transmitir. Essas são as ideias que não devem ser efémeras. Para isso, precisamos sempre destas perspetivas novas.

M: Eu acho que finalmente este muro nos vai representar como povo português e isso é muito importante. Tínhamos um muro que era representativo, mas aqui estamos a falar também de mulheres, não é? Somos tricolor. Desta vez, acho que vamos estar mais representados como povo, como seres humanos, como bicharada e companhia. Mas aqui estou a falar por sermos só mulheres a pintar! Então, eu agradeço muito pela oportunidade que nos deram para representar um símbolo nacional e fazermos parte dessa história da revolução.

 

Existem vários elementos neste mural que são símbolos relativos ao 25 de Abril. Gostariam de falar um pouco acerca da vossa interpretação visual destes símbolos e a forma como os transportaram para o mural?

TA: Eu não vou pintar o cravo mas é um símbolo que é de todos. As flores são uma metáfora que eu utilizo bastante no meu trabalho, porque significam resiliência, crescimento, evolução. São as flores que quebram o betão para crescer e florir. O cravo é o grande símbolo da nossa revolução, cor do sangue que corre pelas nossas veias. É um dos símbolos que era importante representar e acho que todos nós nos vamos apropriar desses cravos.

PP: Vou contornar um pouco a questão e falar acerca dos novos símbolos que acrescentam a esta ideia da revolução. Primeiro, a questão bélica deste período. Acho que escapámos a isso ou tentámos fazê-lo. Não sei se posso afirmar por toda a gente que foi uma escolha consciente, mas penso que sim e, por isso, as armas não estão aqui presentes. E há muito mais símbolos que representam a união, não a luta armada em si, mas o porquê da luta. Eu também gosto de sugerir que existem outras formas de luta, várias frentes dentro da luta e aqui, principalmente, na escola: a educação, o direito, o acesso a cultivar, a partilhar e receber conhecimento.

Eu acho que é um símbolo que está bastante presente na nossa interpretação. Temos estes focos que partem da figura central que é a cara da revolução. No entanto, a revolução é composta de vários ideais como a união e a liberdade. Estes focos dão luz a esses outros momentos que levam e que constroem o tal segundo da revolução.

MM: A leitura é feita da esquerda para a direita. A parte de trás do Salgueiro Maia (não toda) representa um tempo anterior ao 25 de Abril, em que o cravo está representado dentro das pessoas. Há uma fila de pessoas de mãos dadas, em união, depois levantadas, simbolizando a luta e a resistência. Não falamos muito de lutas ou de conflitos armados, mas o cravo transmite a ideia de um tiro ou de repressão – as folhas do cravo quase fazem lembrar arame farpado. Num outro momento, dá-se a libertação em que as pessoas levantam o cravo e mostram o triunfo das ideias da união em tudo o que queremos representar. Em relação aos focos, a maior parte vai para a frente, não é? Também temos essa ideia de que precisamos de continuar a construir e dos valores que queremos dar luz, para que continuem a ser implementados.

M: Para finalizar o mural, temos as filigranas representadas, não só por ser uma arte que eu adoro, mas é também por representar caminhos, linhas, formas…. Representa também a dicra, uma uma escrita muito antiga africana que eu fazia antigamente só por fazer. Não sabia o que era e quando descobri, fazia todo sentido estar aqui.

 

O Mural do Salgueiro Maia tornou-se, não só num símbolo da NOVA FCSH, mas também da cidade de Lisboa. Isto tornou o trabalho mais desafiante?

TA: Sim, bastante. O mural foi acolhido por toda a gente e é difícil comparar. Há uma espécie de um entrave? Sim. Eu acho que a mudança acaba por ser assustadora. O primeiro impacto pode ser diferente, porque há as cores, mas eu acho que fizemos um pouco de propósito para fugir [ao outro mural]. Fora a imagem do capitão estar centrada e estar a preto e branco, a nossa ideia era fugir um pouco ao que estava antes. É óbvio que vão haver sempre comparações e muita gente vai provavelmente preferir o anterior, mas espero que acolham este mural da mesma forma, tal como nós acolhemos o desafio.

Como acham que o público vai reagir e receber este novo mural?

PP: Existe sempre uma certa pressão devido à questão do património, associada a uma carga afetiva e ao valor simbólico que vai ganhando. É o que é, é a Street Art. Como a Mariana disse, a partir do momento em que pomos algo cá fora, perdemos esse controlo, deixa de ser só nosso. Ainda é um pouco nosso, mas deixa de ser só nosso. Então, sobre a reação das pessoas, eu espero que haja pessoas que se vão identificar com as perspetivas que nós trazemos. Espero também que haja reações mais contraditórias e rabugentas. Espero é que haja reações, que não seja algo que não diga nada agora, desde que sejam coisas como: “O que é isto? Porquê estes desenhos? Porquê estas cores?”. Isto vai levar a outras perguntas, nem que seja permitir conhecer as artistas que fizeram este mural e quem é que está ali representado. Portanto, que venham daí as reações.

MM: Em relação às reações, eu imagino que sejam muito diferentes umas das outras. Até já tivemos algumas, não é? Perguntaram se era o Salgueiro certo e também já disseram que preferiam o outro. Vai haver umas opiniões diferentes. Então, eu acho que vão surgir reações. 

M: Espero que as reações sejam boas e más. Serão aceites, porque eu não tenho tempo para reclamar. Eu vou tentar não ligar muito a estas reações, principalmente às negativas, porque sei que vão existir, mas é normal, é a arte, é o que temos hoje no mundo para apresentar e o que temos para receber. Portanto, paz e amor e muitas felicidades.

TA: Só para acrescentar que a nossa herança, a herança do mural que estava anteriormente, a herança dos murais de abril, a herança do 25 de Abril, as nossas experiências dessa liberdade que é adquirida existem por causa dessa liberdade que temos para estarmos aqui as quatro a pintar esta parede e o que importa aqui é que fomos fiéis àquilo em que acreditamos e ao que queremos representar. Só por isso já está e novas vozes virão. Pode haver reação, mas eu acho que é importante pensar que “paredes brancas, povo mudo” e o povo não é mudo, o povo vai falar e vai comentar. O importante é gerar discussão.