"Na Trafaria": Docente e estudantes falam sobre a sua "escola de cinema"

“Na Trafaria” é o projeto de cinema que levou um grupo de docentes e estudantes até esta localidade para utilizar o cinema como ferramenta cartográfica, num exercício de arte e investigação que procurava propor o mapeamento alternativo do território. 

Do projeto nasceu, em parte, um documentário experimental realizado pelo professor e cineasta Pedro Florêncio e por uma equipa constituída por estudantes do Departamento de Ciências da Comunicação – Carla Dias, Diogo Rodrigues, Francisco Madureira, João Leiria, Nicolau Lobato e Tomás Maia.

Em junho, o filme já tinha iniciado o seu percurso de projeções na Trafaria nos locais simbólicos desta localidade revelando também a sua abordagem metodológica: em cada sessão, o grupo projetava uma versão diferente da montagem do documentário, pensada para os públicos e para os locais onde a projeção decorria. É também essa metodologia que sustenta a ideia que os seus participantes referem como a de uma “escola de cinema” que permitirá conhecer ferramentas cinematográficas para atuar noutros âmbitos semelhantes aos da Trafaria. Simultaneamente, a metodologia é abrangente ao ponto de permitir criar produção científica como a de artigos, teses de mestrado, novos ensaios e montagens audiovisuais nas áreas das Ciências da Comunicação e Cinema. 

Uma nova montagem do documentário estreia agora nos dias 23 e 25 de outubro no Festival Internacional de Cinema Doclisboa, estando simultaneamente na Competição Nacional do Festival. Ambas as projeções decorrem no Cinema São Jorge, em Lisboa.

Ainda em junho, o grupo esteve reunido com dois estudantes da unidade curricular de Realização Cinematográfica com o objetivo de falar e refletir sobre o projeto, numa conversa que foi gravada e registada na sala de montagem do Laboratório de Ciências da Comunicação. Alguns dos destaques dessa conversa podem ser lidos no texto abaixo e ouvidos, na íntegra, na gravação disponível no Spotify.

 

 

Como é que se juntaram para edificar este projecto? De onde partiu e quem tomou a iniciativa?

Pedro Florêncio: Este filme partiu de um convite do Professor João Mário Grilo, no âmbito do projeto T-Factor, que visava acompanhar a construção do IAT (Instituto de Arte e Tecnologia da Trafaria), tendo esta acabado por ficar embargada. O T-Factor, contudo, acabou mesmo por avançar, tratando-se de um projecto de três a quatro anos. Já no final do projeto, que consistia numa espécie de interação contínua entre a academia e a comunidade da Trafaria, surgiu então um convite do Professor João Mário Grilo para eu realizar um documentário. Ele não me falou propriamente em fazê-lo com alunos, de forma exclusiva, ou seja, seria um documentário com um caráter minimamente profissional, uma espécie de filme de encomenda – não só sobre a Trafaria, mas também sobre a relação da Trafaria com o T-Factor, tendo em vista este diálogo inerente ao projeto.

À medida que me ia deslocando à Trafaria, achei que podia testar uma coisa que, na verdade, não era nova na minha vida, que passava por convidar alunos a saírem da faculdade e a experimentarem aplicar, na prática, muitas das teorias/conversas/ideias que íamos tendo nas cadeiras. Não pensei em nenhum aluno em particular, mas imaginei que haveria, em abstrato, alunos que teriam interesse em juntar-se ao projeto, por me encontrar numa permanente conversa com alunos de cadeiras que fui lecionando, desde História do Cinema a Cinema Português, passando por Documentário Contemporâneo. De forma muito natural, fui falando disto a pessoas que aqui estão desde o início, como o Diogo, o João, o Francisco, o Tomás, o Nico, e que foram tendo interesse em ouvir-me falar sobre isto, sobre esta possibilidade da Trafaria ser uma espécie de ateliê ao ar livre, onde pudéssemos testar ideias, no campo, e investigar um território, filmando e pensando sobre o que filmávamos, sem qualquer meta ou calendário fechado em vista – apenas como uma desculpa para podermos continuar as conversas que já íamos tendo, dentro e fora da sala de aula.

 

Durante a rodagem de “Na Trafaria”

Já mostraram que o processo foi muito adaptado a cada momento e àquilo que fazia sentido. De que maneira se manifesta a fluidez deste projeto, para lá do objetivo final de fazer apenas um filme, isto é, quais são as outras possibilidades para lá do filme ou o que procuraram fazer com elas?

Pedro Florêncio: Uma maneira que eu senti que podia ser importante para retirar pressão, quando convidei a equipa para a primeira semana de filmagens, foi repetir várias vezes, ao longo dessa semana, que não estávamos a fazer um filme, mas sim filmagens. Por um lado, isto visava retirar a pressão de termos que dar um destino àquelas imagens, que se concretizasse num filme, e, por outro, lembrar algo que já referi, e que é muito importante para nós, que é a ideia de que nós estávamos lá a estudar – estar no local é estar a estudar esse local.

Só que isto é complexificado pelo cinema, que é a nossa área, pois estudar o local, em última análise, significa, por um lado, mapear o lugar, organizá-lo através das imagens e da nossa relação com esse lugar, mas significa também, à medida que vamos lá vivenciando as coisas, organizar ideias. E essas ideias passam também a depender das imagens que nós fazemos.

Assim, o estudo, por um lado, é sobre o local, é sobre estar lá, e esperamos que seja o cinema a abrir campo para outras disciplinas entrarem, como a Sociologia, a Antropologia ou a Filosofia. No nosso modelo ideal de filme, fazemos uma coisa que é aberta o suficiente a todas as disciplinas da área de Ciências Sociais e Humanas da faculdade, mas também a outras, que se estendem para lá desse grande campo das Humanidades. Por outro lado, para nós próprios, e para quem está mais próximo de nós, dentro da academia, passa por essas imagens permitirem-nos continuar a estudar o cinema.

João Leiria: Num momento de projeção de parte do filme, alguém referiu algo importante: o cinema enquanto mecanismo de escuta. Nós fomos lá escutar aquilo que a Trafaria e as suas pessoas nos diziam, e o filme é uma possível transmissão de parte daquilo que foi escutado, ou seja, para todos nós, acho que a experiência é tanto sobre aquilo que nós mostrámos como sobre aquilo que ficou de fora. No meio de tanta coisa que foi filmada, é impossível transmitir tudo – há essa necessidade de limitar também o todo e focar numa parte, para que a mensagem seja mais clara.

Pedro Florêncio: A certa altura, perdemos a ambição de querer falar sobre a Trafaria, porque o que a Trafaria nos pareceu ter de mais interessante foram ideias de cinema. É um território muito heterogéneo. Em cinco minutos de distância entre um lugar e outro – entre sítios que filmámos ou que hoje conhecemos e não chegámos a filmar – o mundo muda completamente, do ponto de vista social, político, estético, material, rítmico. (…)

Mas começámos a perceber que tínhamos, muito mais do que isso, uma ideia de jogo, uma dimensão combinatória, isto é, podíamos começar o filme exatamente pelo episódio com que estávamos a terminar uma determinada versão. E isso levou-nos a uma outra fase do projeto, que tem muito que ver com a projeção, que é fazer uma montagem para cada projeção, uma nova combinação dos elementos.

Parecendo que é uma grande descoberta, isto acaba por ser, ao mesmo tempo, voltar a uma espécie de raiz que tem que ver com as nossas aulas, algo em que eu insisto muito em História do Cinema e que aprendi com o Prof. João Mário Grilo, que se prende com a dimensão performativa do cinema: a ideia de que o filme não existe por si só, o filme acontece. Quando vemos um filme, o filme faz-nos qualquer coisa no sítio em que o vemos, no momento da nossa vida em que o vimos, e nas circunstâncias em que o estamos a ver. Tudo isto é intensificado pelo facto de podermos fazê-lo também no local em que o filmámos, daí a nossa primeira ronda de projeções ter decorrido na Trafaria. Mas não só aí, já projetámos o filme em sítios onde consideramos que os problemas da Trafaria também estão presentes, como por exemplo em escolas, onde há essa ideia de relação com o território, de como é que o cinema pode filmar e ajudar a estudar e a perceber o território. Quando fomos fazer projeções para esses sítios, levámos sempre uma montagem específica, que imaginámos que pudesse espoletar uma discussão à volta de ideias ou conteúdos específicos que estão nas coisas que filmámos e que encontrámos ao filmar.

Tomás Maia: Não há um filme, há versões.

Pedro Florêncio:Exato, é como se fôssemos fazer um quadro novo num ateliê, com os mesmos materiais, ou com combinações diferentes desses materiais. E o que são estes materiais, o que é, para nós, um recurso? Não são só os materiais da faculdade, não é só o apoio do Lab nos materiais que dá, ou o facto de disponibilizar esta sala, mesmo que usemos só o nosso programa de montagem e não o que está instalado nestes computadores, ou seja, não são só esses recursos técnicos e logísticos. São os recursos humanos, e a turma de Realização Cinematográfica foi, para mim, um recurso. Eu achei que isto poderia ter interesse para vocês, para a vossa turma, e fizemos uma montagem que tentasse criar desejo em vocês, um desejo de querer conhecer a Trafaria e de falar sobre esta possibilidade de cinema. E nós ganhámos imenso com isso, com essa ideia de abrir constantemente o estudo à comunidade. E fizemo-lo na cadeira de Realização Cinematográfica, no Simpósio Interuniversitário Cinema e Pedagogia, organizado por mim e pelo Luís Mendonça, e poderemos continuar a fazê-lo ao longo do próximo ano, com versões extra de montagens adicionais nossas, ou de uma forma itinerante, que é levar a Trafaria ao resto do mundo – no fundo, levar o nosso filme e o território à Escola de Cinema, à escola de Algueirão (onde podemos vir a desenvolver um projeto semelhante a este, no ano que vem), etc.

Referiste o Simpósio e a relação do projeto com a cadeira de Realização Cinematográfica. Em que momentos surgiram essas ligações e como é que tanto a unidade curricular como o Simpósio influenciaram o percurso e a vossa visão do projeto?

Pedro Florêncio: A grande questão de fundo, aí, tem que ver com o nosso interesse geral de pensar a relação do cinema com uma ideia de escola. Não com a escola em concreto onde nós estudámos – ou com o facto de haver uma escola nesta faculdade, que o Prof. João Mário Grilo fundou -, porque a escola é uma coisa mais no tempo que no espaço, pois relaciona-se com a transmissão de conhecimento, e essa transmissão pode acontecer num aparato, num momento específico (numa sala de aula, naquela turma daquele ano), mas, na verdade, se as ideias forem fortes, e se tocarem as pessoas, são as pessoas que levam fragmentos dessas ideias no tempo e as passam a outras pessoas, e isso é levar a escola com elas. E nós gostamos muito de pensar o que é que a escola fez por nós ao longo da vida, mas sobretudo o cinema na escola, porque é comum a todos nós – e vamos falando sobre isso – a existência de figuras, como o Prof. José Manuel Costa, o Prof. João Mário Grilo, que nos marcaram com os filmes que mostraram e com o que disseram sobre esses filmes, assim como também aconteceu nas nossas cadeiras, antes de começarmos este projeto (em História do Cinema ou em cursos livres), falar sobre filmes e perceber que os filmes, de alguma forma, nos incentivavam a falar sobre cinema e a querer fazer filmes, a querer ver mais cinema, numa espécie de metabolismo cinematográfico que não se prende somente com fazer filmes.

Fotograma da versão de “Na Trafaria” a ser exibida no Doclisboa

Sobre o conceito de “buracos”

Pedro Florêncio: Decidimos mesmo levar isto ao limite, explorar um limite que é irmanar o cinema e a experiência pedagógica, isto é, procurar que o cinema esteja muito presente, ao longo de todo este processo, dentro da sala de aula, para que a sala de aula também possa sair mais para o mundo.

Foi isso que tentámos fazer, sobretudo o João, de uma maneira muito martirizante, até heróica, pois ele foi um aluno recentemente formado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas que deu aulas pro bono, ao longo de um ano, numa escola da Trafaria, que é uma escola com especificidades muito difíceis. Ele foi para lá, o ano todo, em parceria com o professor local, e eu achei que isto poderia resultar também do lado de cá – haver uma espécie de canal subterrâneo, a que nós chamamos “buracos”, uma ligação intangível, porque isto não se trata, de repente, de anunciar no site que há um protocolo entre a faculdade e a Trafaria, e que os alunos da faculdade podem ir à Trafaria filmar ou ter experiências como a que o João teve nessa escola, e vice-versa. Essa era a nossa ambição, na verdade: que os alunos dessa escola pudessem também vir à faculdade, porque, sendo honestos, grande parte dos alunos dessa escola não tem ambição nenhuma para continuar a estudar para além do 9.º ano. Nós só pretendíamos dizer-lhes que o que eles fazem lá tem importância aqui, mas essa permuta acabou por não acontecer, por razões várias.

Mas o nosso esforço foi fabricar esse “buraco”, essa passagem subterrânea entre um lugar e o outro, que comporta um risco muito grande: se, para o ano, isto não continua a ser feito, se vocês, que foram os alunos de Realização Cinematográfica, não se interessam por continuar a fazer uma ligação deste tipo, o “buraco” vai encher-se outra vez de água, e vai voltar a dar o mesmo trabalho escavá-lo de novo. E não tem problema. A ideia é que o “buraco” represente uma possibilidade (…)

Francisco Madureira: Acho que esta ideia de descoberta é muito importante no nosso processo. Para além da heterogeneidade da Trafaria, de que já se falou, nos levar a concluir que não há um filme, mas sim versões, acho que estas remontagens que vamos fazendo para cada projeção também podem ser uma forma de continuarmos a nossa descoberta da Trafaria. Cada vez que remontamos – e estivemos aqui ontem a fazer mais uma versão – descobrimos algo novo, e acho que isso, no fundo, liga-se a uma ideia de que, mais do que um processo cinematográfico, isto é uma investigação.

Pedro Florêncio: Mais do que a conceção de um produto, que é o filme, é uma investigação em permanente reconfiguração.

Francisco Madureira: É uma investigação também no sentido em que nós chegamos a essa nova ideia em cada remontagem e, depois, testamo-la em cada projeção, num sítio específico, ou seja, é como se cada projecção fosse uma prova de conceito da ideia que levamos, dessa descoberta que fazemos, dessa ideia de Trafaria que levamos.

Alguns dos estudantes participantes na iniciativa “Na Trafaria” em conversa na sala de montagem

 

Uma das partes que achámos mais interessantes no vosso projeto foi precisamente essa questão de obterem reações diferentes ao remontarem para sítios diferentes, o que deverá acabar por ter impacto na forma como vocês trabalham ou vêem o vosso próprio trabalho. Vendo as reações das outras pessoas às formas distintas de montagem, de que forma é que vocês repensavam o próprio projecto ou outras coisas futuras que quisessem fazer?

Pedro Florêncio: Nós descrevemos as fases do projeto por rondas, ou por anéis, o que curiosamente é também um modelo estético e de organização do material que acontece muito nos episódios/segmentos. Os capítulos do filme que temos, que são recombináveis, funcionam muitas vezes por rondas, e nós próprios também. Não é uma coincidência, ou seja, as versões vão espelhando, também, aquilo que nós somos e a maneira como gostamos de funcionar entre nós. Tem muito que ver com uma ideia de ciclo – não um ciclo natural, mas mais dialéctico, como se de uma dialéctica permanente/sem síntese se tratasse. (…)

A parte boa é que isto é igual às aulas: somos nós, entusiasmados por continuar na Faculdade, não no sentido de sermos eternos alunos (eu também), mas de sentir que a Faculdade nos dá os materiais ideais para pensar – pessoas, salas, monitores, logística/equipamentos. Tudo importa na Faculdade, as pessoas do bar, todo o ecossistema que nos permite pensar e que também nos convida a fazer. (…)

Portanto, as projeções levaram a que falássemos muito sobre o porquê de andar a projetar, para quem andar a projetar, onde, etc., e uma das grandes conclusões a que chegámos é que projetar isto para as pessoas da Trafaria, independentemente de o resultado ser aquilo que esperávamos ou não, é uma maneira de nos libertarmos do labirinto aos poucos, de fazer o que é devido do ponto de vista ético, que é devolver às pessoas o tempo que elas nos deram. Elas deram-nos tempo, de estar com elas durante semanas, e nós devolvemos, por vezes, um minuto delas na imagem; outras vezes, nem sequer aparecem na montagem, mas é importante estarem na projecção, porque ajudaram a fazer essas imagens; e nós, devolvendo isso, também nos libertamos, de alguma maneira, daquele labirinto.

João Leiria: Não é uma devolução apenas do tempo. Essa questão ética vem de um reconhecimento, da nossa parte, de que a nossa presença, ali, é, de alguma forma, uma ação de distracção. Falámos há pouco da questão do “buraco”, que nós estivemos lá a escavar, e essa responsabilidade ética também passa por revelarmos o lado invisível do trabalho que estivemos a fazer, porque só nós é que sabemos o que estava a ficar enquadrado. As pessoas que estavam a ser filmadas, os lugares que estavam a ser filmados não tinham essa noção, ou seja, encerrámos as escavações e, ao mesmo tempo, saímos por elas.

Nenhum de vocês é da Trafaria, mas quem vê as imagens e se envolve com o projeto percebe que estabeleceram uma intimidade muito particular e uma relação quase afetiva com o espaço. Em termos de experiência pessoal, como é que foi caírem nesse local, conhecerem-no, relacionarem-se?
 
Tomás Maia: Para mim, é um pouco difícil dissociar a Trafaria do projeto colectivo e da nossa experiência conjunta, lá. A Trafaria não é só aquele espaço, é também a nossa Trafaria, o espaço que lá construímos e que trouxemos para cá, e que está sempre nesse “entre”. (…) 
 

O que me cativou na Trafaria foi ser um território tão heterogéneo que acaba por ser único, à sua maneira, mas relacionável, por outro lado, com tudo o que existe de fora. Por isso, acaba por ser um território que é uma sinédoque de tudo o resto, e quase um campo neutro de estudos.

E será interessante perceber se existem outros espaços deste género, onde nós ou outros alunos possam também estudar. Acho que esses são os sítios perfeitos – têm uma personalidade forte, mas é possível, ao serem estudados, sair deles para fora. Já em algumas projecções tínhamos percebido que os comentários, até quando falam da escola, não se estão a referir à escola da Trafaria, apesar de a estarem a ver directamente. Estão, sim, a falar de uma ideia de escola, da sua escola, ou do futuro da escola em Portugal.

(…)

Francisco Madureira: Queria sublinhar apenas a ideia de que a experiência das filmagens é indissociável do lugar. Nesse sentido, acho que o título do projecto é muito justo: isto, de facto, é “na Trafaria”, e não “sobre a Trafaria” ou “para a Trafaria”. É na Trafaria enquanto experiência do lugar e, nesse sentido, enquanto alguém que vem de fora, foi muito interessante, a partir dessas heterogeneidades, descobrir diferentes possibilidades de aproximação, perceber qual a distância justa em cada espaço.

 

Pedro Florêncio, docente do Departamento de Ciências da Comunicação que coordenou o projeto.

Os participantes reforçam a sua ideia de “escola de cinema”

Pedro Florêncio: É interessante falar-se de um caso tão concreto. O Diogo percebe imenso de imagem – é um diretor de fotografia, profissionalmente falando. Perante a possibilidade de haver aqui uma escola de cinema (não um curso), na Faculdade, uma maneira de fazer cinema que nos interessa a nós e que esperemos que possa interessar a outros, que tem que ver com muitas coisas que já aqui falámos – estudar, falar, escutar -, o Diogo será um ótimo professor, porque a aula que ele vai dar pode ser tanto sobre como usar e ensinar a mexer na câmara como sobre quando é que se deve desligar a câmara, não de maneira prescritiva, mas baseada no que ele viveu. E isso é o cinema enquadrado no âmbito de uma ciência que é social e humana. Aqui, não estou a fazer justiça ao nome da Faculdade ou do curso de Ciências da Comunicação, estou mesmo a dizer que isso é um mote interessante para nós: o cinema estar ao serviço da ciência, das humanidades, da sociedade.

Diogo Rodrigues: Acho que ganha mais peso, aí, essa dicotomia entre curso e escola. Usarmos o termo “escola de cinema” é mais certo, porque um curso, a priori, encaminhar-nos-á para algo mais específico, ao passo que uma escola dá-nos as ferramentas e as bases que necessitamos para trabalhar, depois, a partir daí. O facto de este projecto ser muito colectivo – quando damos por nós, estão cinco pessoas a gravar – também responde a isso, ou seja, nesta Faculdade, em específico, nesta escola de cinema, não aprendemos a filmar, a pegar na câmara e a fazer o plano e o enquadramento bonito, mas sim a pensar sobre o que esse plano e enquadramento transmitem, por oposição a outros planos e enquadramentos. É a escola do pensamento, por oposição ao curso mais técnico-prático.

Pedro Florêncio: Um curso, se pensado dessa maneira pejorativa – porque nem todos os cursos são concebidos assim -, é um meio para um fim, enquanto isto é um meio sem fim, esta escola que nós prezamos. É um pensar e um fazer contínuos, que se contagiam um ao outro, o tal ginásio. É uma ideia de medialidade pura, ou seja, o cinema põe-nos no meio das coisas, em contacto com as coisas, sem um fim específico à vista. Podem aparecer fins – as várias versões que nós temos são os muitos fins possíveis dessa travessia -, mas não são o mais importante, porque o que mais importa é o meio. É o cinema como medium e a escola como meio, também, como sítio de encontro.