Entrevista a Arturo Zoffmann

Arturo Zoffmann, investigador da NOVA FCSH, venceu uma Starting Grant no valor de 1,5 milhões de euros atribuída pelo European Research Council (ERC) para estudar a transição histórica da democracia para a ditadura. A propósito da atribuição da bolsa, a NOVA FCSH esteve à conversa com o investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC) que explica o projeto “O caminho constitucional para as ditaduras: estados de exceção e autoritarismo na Europa entre 1900 e 1939”, como é que este se vai desenvolver e qual o impacto que espera que tenha no futuro. 

 

Como surgiu este projeto e como se foi desenvolvendo até à candidatura à Bolsa do European Research Council?

Houve duas razões que me levaram a este projeto. A primeira acho que é bem conhecida por todas as pessoas, que foi realmente a pandemia do Covid-19, porque foi nessa altura que todos os governos na Europa e além da Europa, declararam estados de emergência, estados de exceção, que eram figuras legais, ferramentas jurídicas, que estavam um bocado esquecidas, mas que aí, naquela altura, vieram à tona em todos os países.

Foram ferramentas legais que permitiram aos governos contornar ou até suspender elementos básicos do seu quadro constitucional. Mas depois há um motivo também mais individual, mais específico ao meu percurso como investigador, que foi que até agora eu sempre estudei não o Estado, mas os seus inimigos: os comunistas, os anarquistas, os movimentos anticoloniais… eu sempre fiz isso.

Uma das fontes mais importantes que eu utilizei foram as fontes do próprio Estado: eu fui para os arquivos da polícia, do exército para estudar como é que o Estado olhava para estes rebeldes. E utilizando aquelas fontes do Estado, eu reparei a importância que tinham estas ferramentas legais, os Estados de exceção, a legislação de emergência na repressão, e também reparei que muitos países, em Espanha, em Portugal e noutros países, estes Estados de emergência muitas vezes prepararam o terreno para a ascensão das ditaduras.

Esta é a primeira vez que um projeto do Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH é distinguido com uma bolsa ERC. Que importância atribui ao investimento e reconhecimento internacional nesta área de estudos e nesta unidade de investigação específica?

O Instituto de História Contemporânea é um centro de investigação que tem estado a crescer nos últimos anos. Eu sou um de muitos investigadores, não só de Portugal, mas de outros países também que têm obtido bolsas ou projetos de investigação através do IHC. E realmente o estudo da História Contemporânea é bastante importante para percebermos o mundo convulso em que vivemos. É um centro onde estudamos fenómenos como a Revolução Portuguesa, a queda das ditaduras no sul da Europa nos anos 70, as guerras coloniais, a ascensão do fascismo nos anos 20 e 30, e são questões muito relevantes para o mundo atual.

Acho que esta relevância da sua linha de investigação tem-se refletido no crescimento e na expansão do IHC e espero que este projeto também seja mais um contributo para esse desenvolvimento do meu centro. 

 

Como é que a sua investigação nos pode ajudar a compreender melhor o surgimento das ditaduras?

Realmente quando nós pensamos nas ditaduras dos anos 20, 30, geralmente pensamos no fascismo. O fascismo era um movimento político, um movimento até muito reacionário à direita, mas que tinha um elemento rebelde contra o estado democrático constituído. E este projeto realmente complica um bocado esta visão, dá-nos uma visão mais complexa deste fenómeno, porque vamos olhar não para movimentos rebeldes externos ao Estado, nomeadamente o fascismo, mas vamos olhar como é que o próprio Estado democrático, o Estado liberal, contribuiu para minar a democracia, nomeadamente através destas medidas de emergência que permitiram aos governos contornar ou até cancelar e ignorar a sua própria legislação e exercer uma repressão às vezes brutal, que não apenas minou as práticas democráticas e as regras do jogo constitucional, digamos, mas também levou a um empoderamento do aparelho repressivo do Estado, da polícia, do exército. Realmente este projeto transfere o nosso olhar do fascismo para a degeneração do próprio Estado Democrático.

 

Que países escolheu estudar para melhor compreender a erosão das instituições democráticas no período entre guerras e porquê?

Bom, realmente a nossa hipótese é bastante ambiciosa e, portanto, para abordá-la precisávamos de bastantes estudos de caso e temos oito: Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Itália, Alemanha, a Checoslováquia e a Grécia, acho que não me esqueço de nenhum. São bastantes e o objetivo é realmente termos um leque bastante amplo, uma tipologia ampla de estados com percursos diferentes, precisamente para podermos comparar: quais são os pontos em comum, quais são as diferenças, quais são as tendências e os processos gerais.

E aqui nestas tipologias diferentes que eu escolhi, há duas que são especialmente importantes, porque nós temos países onde a democracia ruiu como em Portugal, por exemplo, com o Estado Novo, em Espanha com Franco, Itália com Mussolini, Alemanha com Hitler, mas também temos alguns países que se mantiveram formalmente democráticos neste período, nomeadamente a França, a Inglaterra e a Checoslováquia. E o objetivo, portanto é estudarmos não apenas as ditaduras, mas também os países onde a democracia mais ou menos sobreviveu. Mas queremos estudar também o desgaste da democracia mesmo quando o quadro democrático geral, o quadro constitucional se manteve.

Como considera que este projeto nos ajudará a compreender as questões da atualidade, desde o estado de extrema-direita contemporânea aos potenciais perigos que os sistemas parlamentares enfrentam hoje?

Realmente há um grande interesse hoje entre os cientistas políticos e os jornalistas pela extrema-direita em fenómenos relacionados. O atrito da democracia… há autores que falam numa recessão democrática na nossa época e este projeto permite olhar para estes fenómenos de uma perspetiva um bocado original, um bocado nova porque aqui a ênfase não é nos movimentos “rebeldes” da extrema-direita, do fascismo, mas como é que a evolução do próprio Estado contribui para a ascensão da ditadura. Por exemplo, podíamos, através desta perspetiva considerar como é que medidas relativamente autoritárias ou repressivas de governos formalmente liberais como Macron em França ou Scholz na Alemanha, por exemplo a proibição das manifestações pela Palestina, como é que estas práticas relativamente autoritárias poderiam preparar o terreno ou até fortalecer um futuro governo de extrema direita na Alemanha ou em França.

E já agora, por exemplo, podíamos, através desta perspetiva que estamos a propor, pensar no exemplo da Rússia, onde é verdade que Putin estabeleceu uma ditadura, mas realmente aquela ditadura, se nós pensarmos bem, foi preparada pelo governo liberal do Iéltsin nos anos 90, que também reprimiu a oposição, estabeleceu um sistema fortemente presidencialista. Portanto, já antes do ascenso (ascensão) da ditadura vemos que o regime liberal começa a preparar-lhe o terreno.

 

Quais espera ser os resultados do projeto e que oportunidades acha que pode abrir à investigação da NOVA FCSH para estudantes de História na faculdade?

Um projeto ERC é uma enorme vantagem, é um privilégio de facto, dá-nos muitos recursos e realmente permite uma investigação extremamente ambiciosa como já falei, temos muitos estudos de caso. Portanto, este projeto, se tudo correr bem, vai levar todo um leque de publicações, de iniciativas, de atividades, onde tentaremos envolver toda a comunidade da NOVA FCSH. E também iremos contratar novos colegas que, por sua vez, vão fortalecer os nossos centros de investigação, e não apenas colegas de nível de pós-doutoramento, mas também iremos contratar um estudante de doutoramento. Portanto eu acho que vai realmente impulsionar o trabalho do IHC e da NOVA FCSH.

 

Disse-nos também que até agora este tema tinha sido trabalhado quase em exclusivo juridicamente, e esta é uma abordagem diferente. O que é esta diferença traz?

Sim, é verdade que os estados de exceção têm sido muito estudado, mas sempre foi através de uma perspetiva jurídica, mas na minha opinião um bocado chata, um bocado cinzenta. Foi estudada por alto, digamos, através dos textos constitucionais, da legislação, e o que eu proponho realmente é uma abordagem totalmente diferente, que é estudar estas ferramentas legais na prática, ou seja, o que é que acontecia quando o estado de sítio, o estado de emergência, era proclamado, por exemplo aqui em Portugal, na primeira República. O que que acontecia nos bairros nas ruas nas aldeias do país? E eu acho que esta abordagem histórica da história social, vai dar-nos uma visão muito mais complexa do que os estudos estreitamente legais.