Silenciadas à força, escritoras da Ditadura ganham voz na NOVA FCSH

“Uma noite, em casa dela, no mesmo quarto onde agora recordava o passado, abandonara-se às carícias de Manuel. Ela ardia como se no seu corpo se concentrasse todo o esplendor de uma manhã de sol. Esperava perder-se numa apoteose sem par”. Hoje a frase soa banal mas, em 1938, data em que Maria Archer a escreve no livro “Ida e volta duma caixa de cigarros”, a ousadia notou-se. A censura intervém, requisita um exemplar e, verificando que “nas duas primeiras novelas de caracter acentuadamente erótico a autora compraz-se na volúpia do pormenor sensual”, proíbe o livro e pede à Policia a sua apreensão. A autora ainda reclama junto do Ministro do Interior, mas a resposta é clara: a publicação levaria a “leituras que seriam perniciosas”. E o livro foi mesmo censurado.

Maria Archer “inverteu os papéis de género. A mulher deixou de ser um objeto de desejo, para ser também um ser desejante, um sujeito do desejo. Aquela que deseja um homem, ou vários, e tem um comportamento sexual explícito. Trata-se de uma inversão do papel masculino/feminino aos olhos da mentalidade da época”, refere Isabel Henriques de Jesus, coordenadora adjunta do projeto “Escritoras de língua portuguesa no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, África, Ásia e países de emigração”. Desenvolvido na NOVA FCSH pelo IELT e o CICS.NOVA/Faces de Eva, numa parceria com o CRILUS, Études Romanes, da Universidade de Paris Nanterre, trata-se de um trabalho que “visa integrar a escrita realizada por mulheres no património literário, promovendo o conhecimento, a desocultação e a difusão de escritoras que publicaram entre 1926 e 1974”, lê-se na página de apresentação do projeto. Com o propósito de “visibilizar a sua existência”, foi criada uma base de dados, online e de acesso aberto, onde a equipa da NOVA FCSH identifica e cataloga a produção literária feminina durante a Ditadura Militar e o Estado Novo. No momento contém cerca de setecentos nomes identificados, dos quais mais de oitenta já trabalhados. O trabalho será completado com análise das obras cruzando outras variáveis que esclareçam outros aspetos da vida e obra dessas mulheres. O projeto tem também promovido Colóquios e Conferências, em Lisboa e em Paris/Nanterre. Como resultado do trabalho desenvolvido foram já publicados dois livros.

Muitas autoras, estórias semelhantes

O caso de Maria Archer está longe de ser único. Pode antes ser multiplicado e “tem que ver com uma atitude geral da sociedade da época, centrada na atribuição de papéis de género bem diferenciados, e socialmente hierarquizados”, nota Isabel Henriques de Jesus. E exemplos do silenciamento ou esquecimento não faltam, como os casos de “Natália Nunes ou de Natália Correia, que viu vários dos seus livros censurados, ou de Celeste Andrade, que escreve um livro, “Grades Vivas”, onde se refere a realização de um aborto. Curiosamente, não sei como não foi censurado. Talvez porque a palavra nunca foi nomeada…”.

Tudo isto espelha uma sociedade onde se “dava eco aos homens, não às mulheres, consideradas seres com funções muito específicas e fundamentalmente ligadas à casa e à maternidade. Salvo raras exceções considerava-se que a sua escrita era menor e não atingia o valor da escrita masculina. O termo “escrita feminina” podia até ser usado com intuitos pejorativos”, nota a investigadora da NOVA FCSH. No fundo, sem surpresa, “a grande questão é que o ponto de vista das mulheres não era levado em conta”. Durante muito tempo votadas ao esquecimento, identificar essas mulheres e as suas obras “requer um trabalho de apurada e minuciosa filigrana”. Nesta perspetiva, trata-se de “uma investigação comprometida com a justiça e a igualdade sociais”, assume a investigadora.

Na maioria dos casos, a mistura entre o politicamente correto da época e o papel menorizado da mulher na sociedade, sobretudo quando ligada a tarefas intelectuais, como a escrita, resultou no silenciamento de centenas de obras femininas e na marginalização das autoras. Por exemplo, voltando a Maria Archer, “a ação da censura teve um peso relevante. Graças a ela, a autora perdeu o seu meio de subsistência, tendo de viver mais de duas décadas fora de Portugal”, aponta Ana Bárbara Pedrosa, antiga estudante da NOVA FCSH e autora da tese de doutoramento “Escritoras portuguesas e Estado Novo: as obras que a ditadura tentou apagar da vida pública”, desenvolvida na Universidade de Santa Catarina (Brasil). “As linhas de censura da PIDE eram quase sempre previsíveis: foram censuradas as obras de cariz erótico e aquelas que, de alguma forma, incentivavam à sublevação. Se uma mexia com a moral católica do Estado Novo, altamente repressiva, a outra ameaçava a prossecução imperturbável do regime”, acusa a autora.

À esquerda Maria Archer (1899-1982) e Natália Correia (1923-1993). São alguns das setecentos nomes identificados pelo projeto “Escritoras de língua portuguesa no tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo em Portugal, África, Ásia e países de emigração” que resulta de uma parceria entre o IELT, o CICS.NOVA/FACES DE EVA e o CRILUS, Études Romanes, da Univ. Paris Nanterre. O seu objetivo primeiro é o de promover a investigação sobre autoras do passado que, por diversas razões, foram ignoradas pela História da Literatura.

Isabel Henriques de Jesus confirma. “Não tenho dúvida de que uma sociedade com uma grande raiz católica e num enquadramento político como o Estado Novo tenha hipervalorizado estas questões. A expressão da sexualidade por parte das mulheres é um exemplo disto. Era o grande tabu que não se perdoava às mulheres.” Sempre que as obras aludiam a qualquer questão relacionada com a sua liberdade do corpo ou com a sexualidade eram consideradas escandalosas. Vencer essas barreiras eram atos de coragem e de liberdade por parte dessas escritoras”.

Exemplos não faltam, como o caso de as “Novas Cartas Portuguesas”, obra literária de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, em 1972. As autoras, que ficariam conhecidas nacional e internacionalmente como “as três Marias” (“The Three Marias” foi até o título da edição do livro em inglês), denunciava situações discriminatórias relacionadas com a repressão ditatorial, o poder do patriarcado católico, a condição da mulher e “textos contundentes relativamente à guerra colonial”. Foi, claro, apreendido pela PIDE/DGS graças ao conteúdo que considerou “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”, conta a investigadora. Maria Graciete Besse, professora Catedrática da Université Paris IV-Sorbonne, assinala: “é interessante notar que, se a mulher povoou desde sempre a literatura, a sua omnipresença traduziu-se também por uma ‘omni-ausência’”. Felizmente, “nos últimos anos são vários os trabalhos que resgatam do anonimato (…) mulheres que contribuíram para que a instituição literária revele hoje uma representação mais variada”. Mas é preciso fazer mais, e melhor: como assinalou a coordenadora do projeto, Teresa Almeida: “nos programas de Português do ensino secundário, não há um único livro obrigatório que seja escrito por mulheres.” E, quando surgem, são optativos, de entre muitos outros escritos por homens. Aliás, esta ausência surge também no ensino superior”, acrescenta Isabel Henriques de Jesus. Mas também é justo dizer que se está a operar uma mudança. E a NOVA FCSH acredita ser um dos motores dessa mudança!

Da esquerda para a direita: Teresa Almeida e Maria Isabel de Jesus, respetivamente, Coordenadora Principal e Coordenadora Adjunta deste projeto de investigação

Objetivos do projeto

  1. Criar e desenvolver uma base de dados, online, de acesso aberto, que catalogue e analise a produção literária das autoras no período da Ditadura Militar e do Estado Novo;
  2. Elaborar uma lista exaustiva de escritoras que, entre os anos de 1926 e 1974, tenham publicado livros de prosa, poesia, teatro, incluindo diários, memórias, biografias e autobiografias;
  3. Preencher uma ficha individual para cada autora identificada, recorrendo a membros do projeto e a especialistas;
  4. Estudar a receção nacional e internacional das escritoras referenciadas, procurando identificar os casos de silenciamento e de exclusão;
  5. Identificar sociabilidades literárias tanto a nível nacional como internacional;
  6. Promover a colaboração entre investigadores e investigadoras de diferentes centros de investigação nacionais e estrangeiros;
  7. Realizar colóquios internacionais com vista à partilha dos dados obtidos;
  8. Organizar publicações nacionais e internacionais, tendo em vista a divulgação dos resultados da pesquisa.

 

À direita, duas das muitas publicações censuradas durante a Ditadura Militar e Estado Novo. A primeira, “Ida e volta duma caixa de cigarros”, é uma coleção de histórias curtas sobre mulheres publicada em 1938 por Maria Archer.
Já as “Novas cartas portuguesas” foram lançadas, em 1972, pelas “três Marias”. Segundo Ana Luísa Amaral, autora de uma breve introdução incluída no livro, trata-se de “um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de uma invulgar originalidade e atualidade, do ponto de vista literário e social”. A publicação pode ser adquirida nos dias de hoje por cerca de 20 euros

 

Em um contexto semelhante, está patente no Edifício C da Avenida de Berna, até ao final de abril, a exposição “Leitura e Construção de Género: Doutrinamento contra a Liberdade”. Segundo as curadoras, pretendeu-se traçar “um percurso visual através de vários textos que moldaram o pensamento e a educação de raparigas e jovens durante as ditaduras ibéricas”. O objetivo é alcançado através da mostra de “manuais escolares, contos infantis, artigos e questionários de bom comportamento em revistas femininas, guias da dona de casa perfeita, escolas de noivas, anúncios publicitários e outros textos”, afirmam na página do evento