Sei o que fizeste no Verão passado!

Todos os anos, depois do fim da época de exames, alunos da NOVA FCSH vão de férias trabalhando, pesquisando e escavando. As campanhas arqueológicas de Verão são uma importante componente prática da sua formação. Para alguns, trata-se do primeiro contacto real com o pó, o calor, o sol nas costas que a disciplina implica, assim como com os achados que contam histórias do passado. Algumas destas iniciativas acontecem no âmbito de projetos coordenados por investigadores do CHAM – Centro de Humanidades

Os romanos não podiam faltar

Nesta história não podiam ficar de fora os romanos. No Verão passado, José Carlos Quaresma (CHAM), levou os seus alunos para as escavações anuais em Miróbriga (também conhecida como Chãos Salgados e Castelo Velho), em Santiago do Cacém. Esta cidade romana, referida por Plínio-o-Velho, apresenta vestígios de presença humana desde a Pré-história e com uma ocupação estável desde o Bronze Final. Em 2016 iniciou-se um projeto colaborativo entre a NOVA FCSH, a DRC-Alentejo, o Município e a Junta de Freguesia de Santigado do Cacém. Os estudantes de licenciatura Miguel Carvalho, Melissa Correia e Telma Pires contam como foi a experiência de escavar num dos sítios arqueológicos mais famosos do país, com um centro interpretativo desde 2001, assim como dormir no chão de uma capela. Tratou-se de uma experiência bastante imersiva com o património. Enquanto escavavam, os turistas iam passando, faziam perguntas, tiravam fotografias e o Miguel sentiu que também era uma peça daquele museu a céu aberto.   

Telma conta como um menino de três anos pegou num colherim e brincou à Arqueologia, levando uma memória para a idade adulta. Sobre as particularidades de ser arqueóloga, foca a questão da habituação do corpo às posturas que as escavações exigem, referindo que até este requisito lhe pareceu um desafio interessante. Quanto a dormir na capela, lembra que alguns colegas não apreciaram muito. Contudo, para Telma, foram as três semanas em que “dormiu melhor na vida”, testemunho vivo de um “sono santo”. As escavações de Verão submetem os alunos à vida comunitária. Para que tudo corra bem organizam-se escalas para tomar banho, despejar o lixo, lavar a loiça, etc. 

Cristiana Ameixinha começou pela História da Arte, mas no mestrado saltou para a Arqueologia, porque lhe interessa a questão das materialidades e procura uma componente mais prática. A sua primeira escavação aconteceu em Miróbriga. Apesar da sua inexperiência, o professor e os colegas fizeram de tudo para a integrar, o que lhe permitiu receber uma imensa aula teórica aprendida na prática e ao ar livre. A estadia foi de tal maneira impactante que, depois de regressar a Lisboa, já estava disposta a fazer as malas e regressar. Cristiana sugere mesmo que as campanhas se abram a outros interessados, afirmando que, por vezes, o contacto direto com o estudo e a preservação do património é a melhor forma de o valorizar e de o comunicar.  

Em Santigado do Cacém, os arqueólogos já fazem parte da comunidade. Quando estes chegam ao café, todos querem saber o que se desenterrou naquele ano. A valorização do seu património faz parte da identidade da cidade, que usa a designação “Miróbriga” como uma das suas marcas. 

Grupo de estudantes e arqueólogos da NOVA FCSH em Miróbriga, Santiago do Cacém, e um dos locais escavados pela equipa da Faculdade

Castanheiro do Vento

No sítio arqueológico de Castanheiro de Vento, em Vila Nova de Foz Côa, a poesia do lugar começa logo no nome, prolongando-se na paisagem que, segundo João Muralha Cardoso (CHAM), é indispensável para a explicação dos vestígios materiais. Quase todos os seus alunos elogiam a riqueza da sua visão holística.  

Depois de uma licenciatura em Pintura, Carlota Bóia Neto chegou à Arqueologia à procura de referências para o seu trabalho artístico. Hoje tenta conciliar as duas práticas. Para lá da campanha do Castanheiro do Vento, teve oportunidade de escavar numa gruta no norte de Israel, um contexto do paleolítico superior, com trezentos mil anos. Nesta aventura foi acompanhada pelo colega e amigo Marcelo Chaves. Infelizmente, as experiências internacionais, que permitem conhecer outras academias, escolas de escavação e contextos arqueológicos, são muito difíceis de obter. Assim, os estudantes sugerem que, neste âmbito, as faculdades portuguesas e as suas unidades de investigação organizem intercâmbios entre departamentos de Arqueologia de todo o mundo.  

Apesar das dificuldades, a campanha contou com a participação de estudantes do Reino Unido que, para lá do trabalho em si, tiveram oportunidade de conhecer a região e o parque arqueológico do Vale do Côa. Comparando a sua experiência em Israel, Carlota considera que as condições de acolhimento em Portugal são muito mais cuidadas, pois procurou oferecer-se um programa completo de visitas que não se cingiu à escavação.  

Lucas Crescibene começou os seus estudos universitários no Brasil, em Antropologia, onde teve o seu primeiro contacto com a Arqueologia. A paixão pela Pré-história é firme e levou-o a apreciar ainda mais a escavação no Castanheiro, com João Muralha, os colegas da NOVA FCSH e do Reino Unido, sem esquecer o Américo do mestrado de Coimbra. O lugar conquistou-lhe o coração e vê-se a estudá-lo ao longo do seu percurso académico. Lucas enaltece a forma de trabalhar do professor que, no campo, se senta com os alunos demonstrando na prática o que se aprendera na teoria, acalmando as dúvidas, explicando os processos de trabalho passados e planeando em conjunto as estratégias do futuro.  

A vila de Freixo de Numão transforma-se durante este período, mas de modo carinhoso, como só os lugares pequenos o conseguem fazer: “Olha ali vão os alunos do professor João”. Lucas comenta que nas conversas informais vêm as perguntas: “O que vocês estão fazendo lá?”, “Por que é que fazem isso?”. O diálogo que a partir daqui se estabelece é a melhor forma de comunicar ciência. O saber sai dos laboratórios e dos gabinetes e chega a quem está rodeado e a quem pertence, de facto, o património.  

Quando chegou o momento de entrar no ensino superior, Marcelo não tinha um caminho definido, mas sabia que apreciava a flexibilidade das ciências sociais e que gostava de fazer coisas com as mãos. A ideia da Arqueologia chegou-lhe numa onda, na praia D. Ana, em Lagos, na forma de um calcário conquífero e no poder deste contar uma história com milhões de anos. A escavação do Verão passado do Castanheiro foi especialmente marcante para si, pois os alunos de terceiro ano como ele orientaram o trabalho em laboratório dos colegas ingleses e do primeiro ano de licenciatura. Marcelo destaca que, pela primeira vez, sentiu que estava a aplicar os conhecimentos adquiridos ao longo do curso. Sublinha a importância do trabalho de campo na formação de um arqueólogo e o facto de a NOVA FCSH ser a única universidade em que a escavação faz parte do currículo. Assim, organiza-se, em cooperação com as suas unidades de investigação, de modo a proporcionar essa oferta aos alunos.  

No Castanheiro, de manhã escava-se e à tarde passam-se duas horas no laboratório do Museu Casa Grande de Freixo de Numão. Os alunos são transportados para o campo em carrinhas da Associação Cultural, Desportiva e Recreativa da localidade, que também disponibiliza as instalações para a estadia. Os habitantes estão envolvidos nas campanhas e Marcelo não esquece os nomes das pessoas que os acompanham: a D. Paula, que cozinhou para a equipa, a D. Esperança do café (uma “senhora muito fofa”), e o Sr. Francisco, cujo estabelecimento fica já na periferia da vila.  

Além dos estudantes da NOVA FCSH, a campanha de Castanheiro do Vento contou também com alunos do Reino Unido. Toda a equipa aproveitou para conhecer a região e o parque arqueológico do Vale do Côa

Lisboa de outros tempos

Na secção de cartografia histórica do Arquivo Histórico Municipal de Lisboa, os alunos que trabalham a professora Leonor Medeiros (docente do Departamento de História e investigadora do CHAM) procuram sinais de vestígios de antigos fornos de cal adormecidos na cidade. Depois da identificação nos mapas, a aventura prossegue no automóvel com a docente ao volante. Param em locais menos conhecidos da cidade, particularmente para quem vem do Algarve e de Elvas, como a Melissa e o Miguel. Um dos fornos foi sinalizado em Monsanto. Para o localizar foi preciso meter conversa com os moradores mais velhos que, desfiando as memórias de infância e as dos seus antepassados, participaram de forma inconsciente na escrita da História. Nestes casos, a descoberta de património adquire o afeto pelas suas próprias experiências ou pelas dos seus pais e avós. 

Desde pequena que Leonor Sul sente uma paixão pela História, gosto incentivado pela mãe. Aos 12 anos, numa viagem à Florida, onde vivem os avós, ficou indelevelmente marcada pelo dia que passou na companhia de paleontólogos. No 10.º ano, conheceu a NOVA FCSH através do programa Verão na Nova, onde encontrou, pela primeira vez, a professora Leonor. Esta experiência ajudou-a a decidir-se pela Arqueologia. Chegou à licenciatura convicta que o seu destino seria a Pré-história, mas à medida que foi avançando aproximou-se das épocas Moderna e Contemporânea e, sobretudo, da Arqueologia industrial. Neste campo, fascina-a a conciliação com a história oral. É preciso ter cuidado com o que contam as fontes vivas, tal como acontece noutro tipo documentos. A objetividade vigilante não a impediu de se deliciar com a senhora que os recebeu em casa e lhes contou que aquela, como todas as outras do bairro, tinha sido construída com a cal proveniente dos fornos agora abandonados. O dono da oficina nada sabe na primeira pessoa, mas o Sr. António trabalhou nas pedreiras de onde vinha a matéria-prima. No bairro do Alvito, foi preciso andar mais de uma hora para encontrar este testemunho. A solidão na velhice cria fontes generosas, com vontade de abrirem as portas do passado, talvez porque este seja o único caminho possível.  

A geóloga Eva Leitão acompanhou a equipa e proporcionou aos jovens arqueólogos uma viagem temporal, que os transportou dos fornos do século XX até Pré-história, quando as pedreiras se formaram. Explicou que nem todo o calcário serve para produzir cal e que, antes da História, existira em Alcântara um braço ou esteiro do Tejo. Hoje, quando a Leonor atravessa a ponte, não só imagina essa imensidão de rio, como vai sempre com os seus olhos de ver verdadeiramente visto, à procura de estruturas na paisagem que possam indicar a existência de mais fornos. Confessa que lhe aconteceu o impensável. Apesar de não serem muito apelativos, os fornos, com as suas gentes e histórias associadas, tornaram-se fascinantes. Deste projeto em particular, aprecia o facto de ter estado presente em todos os momentos: identificação na cartografia, localização, estudo das estruturas, averiguação de funcionalidades e disseminação do conhecimento. Nem sempre um aluno de Arqueologia tem oportunidade de estar presente na fase final da ciência – a devolução à sociedade. 

Tudo isto aconteceu no Verão passado. Ficamos agora atentos ao que a NOVA FCSH vai fazer nas próximas estações!

Equipa do projeto História e Saberes da Cal em Lisboa, da esquerda para a direita: Miguel Carvalho, Melissa Correia, Leonor Medeiros, Leonor Sul, Rodrigo Teixeira. Ao centro um dos fornos de cal de Lisboa, perto de Monsanto