Para as democracias, amanhã talvez seja longe demais
Cena do filme “Salgueiro Maia — O Implicado”, de Sérgio Graciano

É provável que Winston Churchill, antigo primeiro-ministro britânico, tenha toda a razão quando afirma que “a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas”. As imperfeições são fáceis de apontar e André Santos Campos, investigador da NOVA FCSH, começa logo com a mais óbvia de todas: a “propensão clara para o curto prazo”. Mais exatamente, o que isto significa é que “as instituições [democráticas] tradicionais são frequentemente consideradas inadequadas para governar a longo prazo, uma vez que contêm elementos que promovem o pensamento imediato e potencialmente prejudicam o futuro”, nota o cientista da NOVA FCSH no seu projeto de investigação “Democracia Presente para Gerações Futuras”, atualmente em desenvolvimento no Laboratório de Ética e Filosofia Política do IFILNOVA.

A questão mais profunda abordada neste trabalho é que as democracias “dependem de critérios de legitimidade sensíveis ao tempo, como a existência de alguma forma de consentimento, por exemplo na forma de eleições ou outros modos de prestação de contas, e contêm instituições que normalmente funcionam dentro de horizontes temporais curtos”, nota o investigador. Logo, é legítimo levantar a questão de que “se as democracias têm um enorme poder de afetar e prejudicar o futuro distante”, devem então as gerações futuras ter direitos garantidos no tempo presente? A pergunta faz sentido dado que “avanços tecnológicos sem precedentes e estruturas sociais e económicas excessivamente complexas aumentaram as capacidades das sociedades atuais para produzir quantidades consideráveis de valor para o futuro”, nota André Santos Campos. O exemplo mais imediato é o das alterações climáticas, que todos sabemos ser urgente, e vai desproporcionalmente afetar muito mais os nossos descendentes do que a nós próprios. A este caso juntam-se muitos outros, como a “quantidade de dívida pública, o desemprego juvenil ou o financiamento das pensões futuras”, todos com “potencial de criar condições injustas e instáveis em sociedades futuras”. Se nenhuma destas questões for enfrentada hoje, podem impactar as comunidades democráticas a ponto de lhes trazerem um risco existencial, pois qualquer atraso em incorporar nelas decisões de qualidade a longo prazo pode significar perder “uma janela para evitar danos catastróficos para as gerações vindouras. Enfrentamos, portanto, uma contradição na distância temporal: a urgência da visão de longo prazo”, versus governar para a próxima data eleitoral, completa o investigador.

 

O que é que os Romanos alguma vez fizeram por nós?

A questão filosófica é complexa, mas não inédita. Desde os anos 70 do século XX que ela se tem centrado sobretudo na chamada justiça intergeracional, especialmente entre os indivíduos de hoje e os de amanhã. Mais recente é, ao invés, o impacto que tais questões de justiça intergeracional têm para a vida das democracias modernas. Alguns exemplos de tal abordagem podem ser encontrados em Dennis Thompson (Universidade de Harvard), que publicou o paperRepresentando as Gerações Futuras: Presentismo Político e Tutela Democrática”, em Ludvig Beckman (Universidade de Estocolmo), que questiona, num trabalho académico, se “Os não nascidos devem ter direitos?” e em Michael Kates, que escreveu sobre “Justiça, Democracia e Direitos Futuros”.

Todos parecem ter uma opinião, e até o Chat GPT, a quem colocámos a questão por curiosidade, assegura que “as gerações futuras devem ter direitos democráticos”. Mas também avisa que “não há garantia de que esses interesses sejam sempre protegidos. As decisões políticas podem ser influenciadas por interesses de curto prazo, e é possível que políticas de longo prazo sejam negligenciadas”. Uma inteligência artificial que parece conhecer bem a Humanidade.

Existem também pensadores que defendem que os regimes totalitários têm potencial para lidar melhor com a questão do imediatismo. Porque, não estando sujeitos a sufrágios eleitorais, podem, em teoria, preocupar-se menos com o efeito a curto prazo das suas decisões. “O perigo é que, se as democracias não conseguirem demonstrar ter autoridade legítima suficiente para governar para o futuro distante, sempre que ocorrerem conflitos entre os interesses das futuras gerações e das pessoas presentes, a preferência por regimes autoritários ou tecnocráticos (não vinculados às restrições temporais das democracias) pode crescer precisamente por razões pretensamente benéficas para o futuro”, previne o investigador do IFILNOVA. Ou seja, um equilíbrio entre o ‘hoje’ e o ‘amanhã’ é fundamental, até para que nunca alguém questione “o que é que os romanos alguma vez fizeram por nós?”, diálogo satírico dos Monty Python onde, no primeiro milénio, um grupo de revolucionários chega à conclusão de que  – à exceção da criação do saneamento básico, um sistema de educação, a construção de estradas e canais de navegação, conhecimentos de medicina, desenvolvimento de técnicas de irrigação, a criação de riqueza ou a paz duradoura – os romanos nada tinham feito pelo seu futuro.

 

Desenvolver a solução

O trabalho de investigação de André Santos Campos só se encerra em 2024, mas algumas respostas podem já ser adiantadas. O desafio do projeto tem incidido na possibilidade de reconfigurar certos conceitos-chave da teoria democrática, expandindo o seu horizonte temporal de modo a incluir um futuro distante. Explora-se também a hipótese de saber se “a propensão das democracias contemporâneas para o curto prazo é sistémica e necessária ao projeto democrático liberal, ou se elas contêm já os instrumentos conceptuais e institucionais que permitem elaborar decisões estratégicas a favor do futuro distante”, explica.

Para já, defende-se que “contrariamente ao que muitos autores parecem acreditar, as democracias não estão necessariamente programadas para um governo a curto prazo”, ainda que seja importante “reconfigurar as suas perspetivas temporais, a fim de torná-las orientadas a longo prazo e suficientemente legitimadas”, defende. Porque o tratamento justo das gerações futuras exige uma reconciliação entre a democracia e a visão de longo prazo, os regimes contemporâneos “devem estabelecer um equilíbrio entre aqueles que participam nas democracias representativas e aqueles cujos interesses serão afetados pelas decisões de hoje”. A necessidade desse compromisso é uma das forças motrizes do trabalho do IFILNOVA, até para não reduzir a democracia ao “processo através do qual as pessoas escolhem aquele que fica com todas as culpas”, nas palavras irónicas de Bertrand Russell.

Um programa e dois livros

Recentemente, André Santos Campos deu uma entrevista sobre o seu projeto ao programa “Isto é Filosofia”, da Antena 2, que pode ser escutado na RTP Play. Trata-se de um espaço com o apoio da Sociedade Portuguesa de Filosofia que procura mostrar a “variedade e a relevância da filosofia, ao dar conta de 10 projetos de investigação nesta área (…) através de uma conversa com um dos seus investigadores responsáveis”, em representação de cada uma das unidades de investigação que trabalham em filosofia em Portugal, à cadência de uma por episódio. André Santos Campos foi escolhido como o representante do IFILNOVA.

Em maio de 2024 está previsto o lançamento do livro “The Semi-Future Democracy. A Liberal Theory of the Long-Term View”, publicado pela Edinburgh University Press, onde serão tratados os temas desenvolvidos pelo investigador da NOVA FCSH.

No mesmo contexto, mas coordenado por Giovanni Damele (IFILNOVA), José Pereira, Inês Cisneiros e Sofia Estudante (estudantes da Faculdade), vão também publicar “Desafios de Governar para o Futuro: Democracia e Justiça Intergeracional”. O livro sai no princípio de 2024.

André Santos Campos, investigador do IFILNOVA e responsável pelo projeto “Democracia Presente para Gerações Futuras”

 

Bilhete de identidade

Nome: Democracia Presente para Gerações Futuras

Equipa NOVA FCSH: André Santos Campos (IFILNOVA), Catherine Moury (IPRI). Devon Cass (IFILNOVA). Gabriele De Angelis (IFILNOVA). Giovanni Damele (IFILNOVA). Sofia Guedes Vaz (IFILNOVA). Susana Cadilha (IFILNOVA)

Duração: 40 meses

Entidade financiadora: Fundação para a Ciência e a Tecnologia (200 651 €)