Nuno Júdice (1949-2024)

É com profundo pesar que a NOVA FCSH comunica o falecimento de Nuno Júdice, Professor Jubilado da NOVA FCSH, antigo investigador e membro fundador do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT). 

Ana Paiva Morais, docente da NOVA FCSH, e Teresa Almeida, professora aposentada da NOVA FCSH, são autoras de uma nota de pesar.

 

“Não sei de onde vem esta imagem que percorre

os dias e as noites, ou esses instantes em que um rumor

se desprende do fundo do ser. 

Nuno Júdice, “O Amor (fragmento)”, in Navegação de acaso (2013)

Nuno Júdice, estende-se o manto do silêncio na sua partida a 17 de março.  Nascera em 1949, na Mexilhoeira Grande, no Algarve. Romancista, ensaísta, dramaturgo, crítico, tradutor, professor universitário, nome maior da poesia portuguesa contemporânea, não é fácil descrever o trajeto de um dos grandes intelectuais do nosso tempo que precocemente nos deixou. Infatigável no seu labor, em todas as atividades a que se dedicou, Nuno Júdice incessantemente indagou os mistérios da palavra, sulcou caminhos em que escrita literária e teoria se uniam, mostrou como o ensino da literatura e a leitura são partes de um mesmo exercício, e soube sempre, sabiamente, em cada um dos seus poemas, em cada um dos seus textos, regressar ao ponto inicial, onde palpita a vertigem da palavra. Foi um dos autores que mais decisivamente marcou a poesia e a ficção portuguesas, não só numa fase de transição, na década de 70, mas em toda a sua obra, em que sempre interrogou os processos de criação literária. A Noção de Poema (1972) foi o primeiro livro de uma longa obra literária, onde se contam largas dezenas de títulos, mas sobretudo, de grande amplitude, nos géneros cultivados, nas modalidades de escrita – criativa, ensaística, de edição crítica e de antologias, de tradução.

Grande dinamizador e divulgador da literatura portuguesa a nível internacional, foi Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Paris (1997-2004), diretor do Instituto Camões em Paris, comissariou a área de literatura da Exposição Universal de Sevilha (1992), foi comissário literário da mostra portuguesa na 49ª Feira do Livro de Frankfurt (1997), e publicou uma antologia de literatura portuguesa do séc. XX em França,  Voyage dans un siècle de littérature portugaise (1993), reeditada e revista na edição portuguesa Viagem por um século de literatura (1997).  No nosso país, essa dinamização fez-se sentir muito em particular na sua longa atividade como professor de literatura francesa na NOVA FCSH, a que se juntou a lecionação de literatura portuguesa, tendo marcado muitas gerações de estudantes, quer pela extensão da sua cultura, quer pela elevada qualidade das suas aulas, onde à atualidade das técnicas de abordagem dos textos aliava uma sensibilidade invulgar para o imaginário literário e uma pedagogia da leitura crítica individual.

Professor dedicado, reservava à dimensão pedagógica do seu trabalho universitário grande cuidado, na lecionação como, também, na orientação de dissertações e teses, de que puderam colher grandes benefícios no seu desenvolvimento científico muitos estudantes nacionais e internacionais. Como escritor, Nuno Júdice dedicou-se, além da poesia, ao romance, ao conto e ao teatro. A sua obra singular revisita os clássicos e, sobretudo, os românticos, e reserva uma larga parcela ao modernismo, cujas questionações afloram em vários poemas, assim como é objeto de estudo nos ensaios “O Futurismo em Portugal”, que antecede a edição fac-similada do Portugal Futurista (1981), A Era de “Orpheu” (1986) ou As Máscaras do Poema (1998). O jogo das máscaras e a teatralidade da poesia marcam os seus textos poéticos, refletindo um diálogo muito próximo com os poetas de “Orpheu”, mais expressivo nas décadas finais do século passado. A perseguição dos meandros da escrita literária também o levou a remontar às origens medievais, retomando na poesia temas como os amores de Pedro e Inês (Pedro, Lembrando Inês (2001), através da crítica em O Espaço do Conto no Texto Medieval (1991) e na edição antologia de cantigas de D. Dinis,  Cancioneiro de D. Dinis (1988).

Foi membro fundador do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT), onde investigou desde 2002 na área da literatura tradicional, que não desligava da demais produção literária, sendo disso exemplo O Fenómeno Narrativo do Conto Popular à Ficção Contemporânea (2005), A Certidão das Histórias (2006) ou B.I. do Capuchinho Vermelho (2006), e ocasionalmente enveredou por experiências poéticas sobre a materialidade do texto, como no opúsculo Letra-a-Letra (2015). A reflexão sobre o fenómeno da crítica, aliado a preocupações de ordem pedagógica e teórica, acompanhou-o ao longo da sua carreira, sendo disso exemplo, entre vários títulos já referidos, o pequeno manual ABC da Crítica (2010). A tradução constitui um campo excelente de exercício de minúcia sobre a escrita literária, tendo traduzido  Corneille, Emily Dickinson, Ramón López Velarde, Adonis e Gioconda Belli, entre outros.

Autor dos mais prolíficos da atualidade, renovou a escrita não só nos seus livros de poesia, mas fazendo-a dialogar com outras formas, como a ficção, o teatro e mesmo a teoria. Assim, o próprio poema não raro convive com a narrativa, como se pode ver, por exemplo, em Teoria Geral do Sentimento (1999), Navegação de Acaso (2013) ou O Mito de Europa (2017), mas também, por outro lado, algumas das suas obras de ficção dialogam e desafiam a história, cruzando o passado com o presente, como no admirável Os Passos da Cruz (2009) ou em A Implosão (2014), e vários dos seus trabalhos ensaísticos convidam a uma revisão da escrita criativa – O Processo Poético (1992) e A Viagem das Palavras (2005). 

A sua poesia foi-se depurando ao longo do tempo, atingindo uma aparente simplicidade, onde o real e o fantástico se interpenetram, criando um universo imaginário de sombras e de luz, através de um trabalho que privilegia a metáfora e a analogia. Nas narrativas, o quotidiano é atravessado pela memória do passado, com particular relevo para os tempos do Estado Novo, como se cada espaço estivesse impregnado pelas vozes perdidas e pela presença fantasmática de quem o habitou. Teve grande reconhecimento internacional, que também se mede pelas traduções dos seus textos. Tem obras traduzidas em vários países, entre os quais Espanha, Itália, Inglaterra, Venezuela, China e França, tendo uma antologia de poemas seus na prestigiada coleção Poésie da Gallimard.

Dirigiu a revista Tabacaria entre 1996 e 1999 e, a partir de 2009,  a Colóquio/Letras. Dos muitos prémios que recebeu, destacam-se o prémio Reina Sofia de poesia Ibero-Americana pela sua obra poética (2013). No México, recebeu o prémio Poetas do Mundo Latino (2014) e o prémio Juan Crisostomo Doria para as Humanidades da Universidade Autónoma do Estado de Hidalgo, pela sua carreira universitária e literária (2017). Recebeu, ainda, o Prémio de Poesia Pablo Neruda (1975) e o Prémio Argana de Poesia, da Maison de la Poésie de Marrocos (2015). Foi também galardoardo com os prémios D. Dinis da Fundação Casa de Mateus (1990), Rosalía de Castro do P.E.N. Clube da Galiza (2018) e Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho da Associação Portuguesa de Escritores (2022).  Nuno Júdice ensinou a quantos se sentaram nos bancos das suas aulas e aos seus leitores que a leitura dos textos literários nunca pode deixar de ser simultaneamente um exercício de crítica, que é afinal a leitura inteligente de um texto.  

Nesta hora de despedida, a NOVA FCSH, casa a que o professor e escritor tanto deu, presta uma sentida homenagem a Nuno Júdice, e endereça à sua família profundas condolências”