Mesmo 445 anos depois, Alcácer-Quibir pesa na memória. Há um projeto do CHAM que explica o que aconteceu depois

Lisboa, 25 de junho de 1578. D. Sebastião, cognominado “O Desejado”, parte de Lisboa com uma força de cerca de 23 mil homens com destino a Marrocos para expandir a influência portuguesa no Norte de África. Além de pretender beneficiar o comércio marítimo, sobretudo de ouro, gado, trigo ou açúcar, move-o também o fanatismo religioso, a vontade de reviver glórias militares do passado e o sentido de oportunidade: Mulei Mohammed, antigo sultão marroquino deposto pelo sobrinho, tinha vindo até Lisboa solicitar a ajuda dos portugueses para a sua guerra sucessória. O desafio foi aceite.

No dia 4 de agosto as tropas portuguesas, compostas também por mouros leais a Mulei, espanhóis, italianos, alemães ou belgas, encontram-se perto da cidade de Alcácer-Quibir, onde enfrentam uma força com o dobro do tamanho. Após quatro horas de combate intenso, a batalha termina com a completa derrota do exército português, que deixa naquele campo quase 9 mil mortos e 16 mil prisioneiros, incluindo grande parte da nobreza nacional. Acredita-se que 100 sobreviventes tenham escapado, a custo, do local da batalha. D. Sebastião morreu em combate, o corpo foi transportado para o Convento da Trindade de Ceuta e, poucos anos depois, transladado para o Mosteiro dos Jerónimos.

  E posto assi em ordem nosso esquadrão dos ventureiros, estivemos esperando hum bom espaço o sinal da batalha, e o Santiago; com os Mouros defronte, que da mesma maneira parece o esperavão, em hum plano como huma mensa tão largo, quanto a vista alcançava” – descrição da batalha de Alcácer-Quibir por Miguel Leitão de Andrada. O autor participou na batalha, fugindo depois para a praça de Melilha, onde embarcou de regresso a Portugal  

 

De facto, uma cidade em movimento

Já na época contemporânea, mais exatamente 445 anos após o confronto histórico, o CHAM propõe-se a fazer balanço das consequências através do projeto FCT “Cidades para a guerra: um exército europeu em Marrocos no século XVI”. A ideia “é colmatar a lacuna que persiste quanto ao conhecimento das tropas que constituíram o exército que o rei D. Sebastião liderou em Marrocos, a partir de uma abordagem inovadora baseada na análise das fontes documentais da Ordem da Santíssima Trindade”, explica Edite Alberto, investigadora responsável pelo projeto e Mestre, pela NOVA FCSH, em História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa, com dissertações publicadas referentes ao resgate dos cativos portugueses no Norte de África. E porquê “moving city”? Porque era isso mesmo, uma cidade em movimento, conceito que parte do historiador Lauro Martines ao comparar exércitos a uma comunidade móvel com necessidades diárias de pão, bebida e outros alimentos. E que, mais do que soldados, incluía também carreteiros, ferreiros, carpinteiros, padeiros e outros artesãos, bem como mulheres, escravos e crianças.

Em cima à esquerda: Descrição e registo dos resgates de prisioneiros da Batalha de Alcácer Quibir pelos padres trinitários; ao centro: In Miguel Leitão de Andrada, Miscellanea, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012, pp. 126-127; à direita: pintura do Séc. XIX retratando a Batalha de Alcácer Quibir, autor desconhecido

Mais do que o processo da batalha em si, o interesse do CHAM debruça-se sobretudo na composição dos exércitos e na complexa negociação da liberdade dos prisioneiros após a batalha, em várias cidades e ao longo de mais de uma dezena de anos. Aqui recorre-se às crónicas e relações redigidas pelos religiosos da Ordem da Santíssima Trindade que, em Marrocos, procedeu à organização dos resgates. “É a partir destes documentos que podemos identificar os indivíduos que foram resgatados e conhecer o seu quotidiano durante os anos que se seguiram à batalha”, conta a investigadora. A partir desta fonte torna-se possível “caracterizar o quotidiano dos prisioneiros durante os anos que se seguiram à batalha, e como sobreviveram enquanto aguardavam o resgate”, já que os documentos elaborados pelos padres incluem dados como o nome, a afiliação, a naturalidade, o ofício, a duração do cativeiro e o preço pago pelo resgate.

  Dado o sinal da batalha remetemos aos inimigos, que tambem se vinhão chegando a nós cingindo sempre o nosso campo, que parecia muito pequeno, ou nada em sua comparação, assi por elles serem muitos, e largos, como nós poucos, e juntos” – Miguel Leitão de Andrada  

 

O passo seguinte é combinar os registos com outras fontes primárias, identificando e registando todos os cativos da batalha mencionados nas listas. O trabalho implica harmonizar e organizar dados, vertendo depois o conhecimento numa geo-base de dados que permita o estudo da dinâmica espacial da população envolvida no evento e no próprio esforço de recrutamento. A identificação dos militares fornece informações sobre o quadro de oficiais, a idade dos militares e até dos civis que participaram do confronto.

Ordem da Santíssima Trindade , Convento da Trindade de Lisboa, livs. 26 e 28

O resultado final da “Batalha dos Três Reis”, a forma como é conhecida em Marrocos, é do conhecimento geral. Ditou o início do fim da Dinastia de Avis e abriu uma crise dinástica que, dois anos mais tarde, resultava na perda da independência de Portugal para a dinastia Filipina. Mesmo em pleno século XX é fácil encontrar reflexos da batalha na própria obra de Fernando Pessoa, um dos grandes impulsionadores do Sebastianismo e do mito que, numa manhã de nevoeiro, o desaparecido Rei haveria de retornar para restaurar a antiga glória de Portugal.

  “De maneira que de huns, e outros ficou aquillo por ali té onde chegamos cuberto de mortos, homens, e cavallos, em tanto, que dificultosamente se podia por ali entrar a cavallo, depois: e tanto o sangue que em partes me dava quasi pelo artelho. E tudo gritos, e lamentos, mortos em cima de vivos, e vivos de mortos, todos feitos pedaços, Christãos, e Mouros abeaçados, chorando e morrendo, huns sobre a artilharia, outros braços, e tripas arrastando, debaixo de cavallos, e em cima espedaçados, e tudo muito mais do que já vos posso, porque aperta comigo a dor, na lembrança do que passei” – Miguel Leitão de Andrada  

 

Levar o conhecimento às escolas e comunidade científica

Porque o conhecimento não se deve perder nas prateleiras das bibliotecas, parte do projeto do CHAM é facilitar que os resultados da investigação cheguem aos jovens em idade escolar. Para além da componente da transcrição paleográfica, que de forma simplista consiste na “modernização” de textos antigos redigidos em grafias desaparecidas (por exemplo, os excertos do texto de Miguel Leitão de Arada aqui apresentados), uma vertente importante é a criação de materiais escolares dirigidos a professores e alunos do 4º, 5º e 8º anos de escolaridade, para os quais foram criadas figuras militares para recortar e colorir (em baixo). Já para a comunidade científica, estão a ser preparadas publicações de artigos científicos em revistas com revisão por pares e a submissão de comunicações a congressos internacionais.

Entre os materiais escolares para alunos do ensino básico foram criadas figuras militares da época para recortar e colorir.

 

 

Bilhete de identidade: Cidades para a guerra: um exército europeu em Marrocos no século XVI

 

Equipa NOVA FCSH: Edite Alberto, Luís Costa e Sousa, Maria Augusta Lima Cruz, Mostafa Zekri, Tiago Machado Castro, Diogo Reis Pereira, Mafalda Cordeiro Malheiro, Michele Bosco e Miguel Angel de Bunes Ibarra.

Duração: 18 meses

Entidades financiadoras: Fundação para a Ciência e a Tecnologia (48 808.04 euros)

Próximas atividades do projeto: Congresso Internacional “Migrações Forçadas entre a Cristandade e o Islão na Época Moderna: Espaços, Sociedades e Identidades”, a realizar no Campus de Campolide, nos dias 21 a 23 de setembro.

 

Retrato de D. Sebastião, atribuído a Cristovão de Moura, c.-1571-1574.