Encontros entre o Primitivismo e o Modernismo: origens e influências, num projeto do IHA

No filme “The Trouble With Harry“, uma das raras comédias de Alfred Hitchcock, há um cadáver sepultado, mas que é sempre desenterrado e teima em persistir como um problema por resolver. “O mesmo parece acontecer com certos conceitos, sendo o Primitivismo um deles”, notam Joana Cunha Leal, docente do Departamento de História da Arte, e Mariana Pinto dos Santos, investigadora do Instituto de História da Arte (IHA), coordenadoras do projeto de investigação “Modernismos ibéricos e o imaginário Primitivista”. O objetivo foi o de estudar a forma como as duas correntes artísticas se entrelaçaram, focando a forma como a ‘inocência’ primitivista influenciou os modernistas na sua busca pela autenticidade, impondo-se como uma alternativa às tradições artísticas europeias ‘convencionais’. O trabalho tem ainda a qualidade de focar esta realidade dentro da Península Ibérica, sendo por isso especialmente relevante para investigadores portugueses. Porém, antes de apresentar factos, há que clarificar conceitos.

O Primitivismo é um movimento que influenciou múltiplas formas de expressão artística, exemplos da pintura, escultura, música, literatura, etc. Desenvolvido sobretudo no início do século XX, buscou nas artes e culturas consideradas ‘primitivas’, ou não ocidentalizadas, como as encontradas em sociedades tribais africanas, asiáticas e americanas, uma base de renovação das conceções e práticas artísticas. Impôs-se então como “uma ferramenta importante na produção da narrativa dominante do século XX na história da arte”, tendo a expressão sido cunhada “por críticos, artistas e historiadores, que a inscreveram em livros de história e museus”, descreve a equipa de investigadores do IHA. Mais exatamente, Primitivismo referia-se a certos usos do passado, implicando representações do que este tinha sido, ou poderia ser, quando reencenado no presente.

Em cima, alguns dos Modernistas mais conhecidos de diversos campos artísticos: da esquerda para a direita, Pablo Picasso, Igor Stravinsky, Franz Kafka e Wassily Kandinsky

Politicamente incorreto?

Recordando que o auge do Primitivismo teve lugar por volta de 1900, quando o globo ainda escondia “mistérios” (as grandes explorações de David Livingstone em África decorreram a meio e no final do século XIX), “os artistas eram atraídos pela simplicidade, espontaneidade e autenticidade que percebiam nessas culturas ‘primitivas’”, chegadas do passado a partir de geografias distantes. Ou seja, a corrente é estimulada “pelas descobertas arqueológicas e antropológicas da época, que aumentaram o interesse europeu pelas culturas não ocidentais”, conclui a equipa de investigadores. Só que o entendimento dessas culturas “dependia da suposição de que o tempo de referência era europeu (e norte-americano)”, criando um ponto de vista eurocêntrico. De resto, nota o estudo que essa espécie de “produto da experiência histórica do Ocidente” tem por base a construção ideológica da conquista e da exploração colonial.

Vários investigadores reconheceram e discutiram o problema do primitivismo como parte integrante dos modernismos e da sua historiografia. Portanto, havia uma hierarquia entre o que era considerado desenvolvido e civilizado e o que era considerado subdesenvolvido e selvagem (ou folclórico, ou ingénuo, ou exótico). Objetos ‘primitivos’ eram entendidos como pertencentes a um passado indeterminado, enquanto a arte moderna primitivista pertencia ao tempo real, o presente.

À luz dos dias de hoje, é percetível como a corrente artística tantas vezes envolveu representações estereotipadas e idealizadas das culturas não ocidentais, simplificando e romantizando elementos culturais, contribuindo para estereótipos imprecisos que reforçaram ideias preconcebidas. E, em muitos casos, racistas. Embora o movimento procurasse uma alternativa à tradição artística europeia, muitas vezes acabava por tratar as culturas não ocidentais como exóticas, inferiores ou menos desenvolvidas. De resto, “o simples uso do termo, com ou sem aspas, geralmente destaca um ponto de vista eurocêntrico”, notam os investigadores do IHA. Num exemplo extremo, mas bem documentado, o nazismo foi uma das ideologias que tratou outras culturas como subdesenvolvidas, sustentando dessa forma uma suposta hierarquia racial ariana.

Já a vertente artística do Modernismo requer menos apresentações. Surgido no final do século XIX, atinge o auge nas primeiras décadas do século XX através do Cubismo, o Futurismo, o Expressionismo, o Construtivismo, o Dadaísmo e o Surrealismo como expressões mais visíveis. Porém, todas elas com a intenção de romper convenções e buscar formas de expressão inovadoras para a época. Picasso (1881-1973), Kandinsky (1866-1944), Kafka (1883-1924) e Stravinsky (1882-1971), só para citar os mais conhecidos em diferentes campos artísticos, são alguns dos maiores embaixadores do movimento. Em Portugal destacam-se nomes como Almada Negreiros (1893-1970), Mário de Sá-Carneiro (1890-1916) ou Fernando Pessoa (1888-1935).

Em Portugal, alguns dos mais reconhecidos nomes do Modernismo foram, da esquerda para a direita, Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa

A pegada do Primitivismo no Modernismo Ibérico

Iniciado em 2018 e nascido a partir de questões levantadas num trabalho anterior (o Southern Modernisms), o projeto “Modernismos ibéricos e o imaginário Primitivista” teve como objetivo “analisar as múltiplas e contraditórias manifestações do Primitivismo nas artes e na cultura visual dos países ibéricos”, afirma Joana Cunha Leal. A escolha geográfica não é inocente, dado que, “devido ao seu passado histórico como cabeças de antigos impérios coloniais e enquanto países periféricos do sul da Europa, Portugal e Espanha constituem estudos de caso excecionais para abordar as ressonâncias históricas, políticas e estéticas complexas” das duas expressões artísticas. Por isso, na balança estão sempre os diferentes laços que os dois países “mantiveram com o seu passado imperial, bem como na promoção da estética nacionalista e folclórica da política cultural das suas ditaduras e as manifestações de vanguarda que se lhes opuseram (…), as ideias sobre arte moderna que estiveram na base do imaginário primitivista e as obras de arte modernistas que lhe estão associadas”.

Outro aspeto a sublinhar prende-se com a forma “como o Primitivismo, ao mesmo tempo que alimenta hierarquias cronológicas e distâncias entre o desenvolvido e o subdesenvolvido, também se tornou uma ferramenta na arte moderna. Os artistas modernistas, mesmo por razões equivocadas, conferiram aos objetos ‘primitivos’ um poder disruptivo capaz de desafiar o status quo burguês e o academicismo altamente formalizado do século XIX”. Isto leva a que os investigadores sugiram uma abordagem ao Primitivismo como “um conceito fluido, adquirindo significados e usos diferentes”, considera o estudo.

Num contexto mais virado para Portugal, o trabalho do IHA nota como “os conceitos de ‘primitivo’ fizeram parte da narrativa do colonialismo português, apresentando-o como uma empresa moderna”. Mais em pormenor, analisa-se como a ideia operou dentro da história da arte moderna portuguesa, focando o entrelaçamento da narrativa primitivista na busca pela modernidade e renovação da arte, o interesse antropológico emergente em arte folclórica e africana, a narrativa ideológica do projeto colonial português e as posturas anticoloniais adotadas por artistas portugueses”. Um dos exemplos apontados é a busca pelo “simples e imutável” do escultor português Ernesto Canto da Maya, onde conceitos “como tempo e espaço são experimentados sob um olhar primitivista”, escreve-se na publicação “The Primitivist Imaginary in Iberian and Transatlantic Modernisms” (disponível em open access) e que teve por base o estudo da NOVA FCSH.

Teoria e prática importam!

Terminado o trabalho de investigação – num prazo prolongado por causa das perturbações causadas pelo COVID – importa aplicar as conclusões a uma vertente mais prática. Nesse sentido foram desenvolvidos conteúdos sobre modernismos ibéricos para lecionar nos mestrados em História da Arte e Museologia e Estética e Estudos Artísticos, dos Departamentos de História da Arte e Filosofia, este último na unidade curricular Redes e Transferências Artísticas do Sul da Europa. Diversas teses de mestrado e doutoramento foram também concluídas neste âmbito, sob supervisão de diversos elementos que integraram a equipa coordenada por Joana Cunha Leal.

Numa outra vertente, foram também disponibilizadas sete posições de estágio a estudantes da licenciatura em História da Arte para realizarem trabalhos de investigação nesta área, com 12 ECTCS cada. Os estágios resultaram em 230 horas de atividades científicas, incluindo a redação de um relatório final sob a orientação de membros do IHA.

No campo da divulgação da ciência contabilizam-se um total de 15 artigos publicados em revistas de referência (11 internacionais, 4 nacionais) e um total de 30 comunicações em encontros científicos. Na mesma sequência, foi também reforçado o protocolo Erasmus entre a Universidade NOVA e a Universidade de Girona (Espanha).

Finalmente, realizou-se também uma conferência final, em maio de 2022, que teve por tema “Problemas com o ‘primitivismo’. Usos do passado no modernismo ibérico e transatlântico”, com o propósito de partilhar e discutir resultados da investigação com um público mais vasto. Por certo a ‘polémica’ do Primitivismo nunca será resolvida, mas “há que enfrentar as dificuldades e agitar as águas para causar turbulência”, nas palavras da própria equipa de investigação. Ganha o conhecimento e cumpre-se um dos objetivos do trabalho de investigação.

À esquerda, Joana Cunha Leal e Mariana Pinto dos Santos, coordenadoras do projeto “Modernismos Ibéricos e o imaginário Primitivista”. Tratou-se de um trabalho de investigação de cerca de quatro anos (2018-2022), alojado no Instituto de História da Arte, onde se estudou as expressões do Primitivismo nos modernismos ibéricos e suas implicações políticas, históricas e estéticas

 

A anatomia de um projeto: da interrogação à conferência final

Parte do desafio de desenvolver um projeto científico prende-se com a calendarização de atividades. Neste caso, a recolha e tratamento de dados primários iniciou-se no final de 2018 e envolveu sobretudo pesquisas em arquivos, bibliotecas e museus, que contribuíram “significativamente para todas as tarefas subsequentes”, esclarece um dos relatórios do projeto. Aqui foi também necessário integrar um investigador júnior, destinado a trabalhar com os materiais do arquivo Ernesto de Sousa.

Numa segunda fase (2019-2021), com o decorrer dos trabalhos de campo em locais como o Museu Carlos Machado, o MNAC ou na Casa de los Tiros, entre outros, os resultados da pesquisa levaram à expansão do conjunto de hipóteses, conduzindo ao desenvolvimento teórico e conclusões. Estas foram apresentadas na conferência final do projeto, marcando o encerramento da vertente mais académica do projeto e abrindo-o à discussão ao público internacional.

Porque a divulgação ao púbico também faz parte dos objetivos de qualquer projeto, neste caso a equipa do IHA avançou também para a produção de três livros em acesso aberto e um documentário. Este último, a lançar em breve, mapeia referências e imagens ditas primitivistas na vida quotidiana e na cultura de massas, mostrando como símbolos do passado foram usados para construir identidades nacionais. As publicações saídas deste trabalho foram Ernesto de Sousa 1921-2021: Uma criação consciente de situações / Uma situação consciente de criações, “The trouble with “primitivism”. Iberian and Latin American contexts”, que resulta da conferência do projeto (no prelo), e o livro “The Primitivist Imaginary in Iberian and Transatlantic Modernisms”, cuja consulta está em acesso aberto.