Eça de Queirós, viajante no EGIPTO
Em 23 de Outubro de 1869, na companhia de Luís de Castro Pamplona, Conde de Resende, José Maria Eça de Queirós sai de Lisboa rumo a Cádiz. Na cidade espanhola apanharia o barco para Alexandria, onde aportaria em 5 de Novembro, após paragem em Gibraltar e Malta. Em 7 em Novembro, chegaria ao Cairo.
Era um dos cerca de mil europeus e não europeus que o Khediva Ismail havia convidado para as festividades do século – a abertura do Canal do Suez. Os franceses constituíam o maior grupo sendo em número de 300. Não seria de estranhar, se pensarmos que o Canal é um empreendimento francês; os ingleses sempre se haviam oposto à sua construção e, ao contrário da França, representada pela Imperatriz Eugénia, a quem cabia a abertura oficial, a Inglaterra não enviaria nenhum membro da realeza, mas apenas o Embaixador inglês em Constantinopla, Sir Henry Elliot.
Durante a estada no Egipto, o jovem Eça, então com apenas 23 anos, iria anotar as suas impressões de viagem. Estas (ou o que conhecemos delas) chegariam até nós num conjunto fragmentário de apontamentos contidos no espólio queirosiano da Biblioteca Nacional de Portugal que, sob o título O Egipto. Notas de Viagem, seriam, em parte, dadas à estampa pelo seu filho José Maria, em 1826. Trata-se, como tem sido apontado, de uma edição polémica, com muitas interferências e incorrecções, mas que fornece uma interessante imagem do Egipto da época.
Julga-se que Eça pretendia escrever um livro de viagem, o que nunca viria a acontecer. Não sabemos porquê. Porém, a correspondência queirosiana ainda regista esse intento em 1877, já sete anos após o retorno do Egipto.
Não será de estranhar tal pretensão, que se inseria numa longa tradição de relatos de viagem ao Oriente (Oriente, que constituía uma designação vaga). Chateaubriand, Nerval, Flaubert e Maxime du Camp, haviam-no já feito, mas não só os franceses. O Grand Tour Oriental fora também tema de Florence Nightingale (que estivera no Egipto ao mesmo tempo que Flaubert), Disraeli, Thackeray, ou Mark Twain.
Eça herda um filão de literatura de viagens que, em parte conhece e, decerto, o inspirou. Os viajantes preparavam-se com leituras antes de encetarem a viagem e tinham consciência de estarem a percorrer um caminho literário já trilhado por outros. Por sua vez, os guias de viagem aconselhavam (e citavam) leituras que muitos partilhavam e que incluíam: Heródoto, Ptolomeu, Estrabão, Plínio, Champollion, assim como relatos da época.
A literatura de viagens sobre o Egipto obedecia a um “guião” preciso e, tal como os viajantes que o haviam precedido, Eça segue-o em grande parte. Como veremos, comunga com eles de uma certa imagem do Oriente, imagem que então circulava na Europa.
Como todos os viajantes, Eça desembarca em Alexandria; como eles, fica desiludido com a cidade. Não coincidia com a imagem da lendária polis de Alexandre, o Grande, e de Cleópatra. Mesmo antes de desembarcarem, todos os viajantes dão notícia do Pilar de Pompeu, visto à distância, local que depois visitam. Eça não é excepção. Todos se referem também à denominada Agulha de Cleópatra, um obelisco que havia sido oferecido a Jorge IV por Muhammed Ali, mas que, quando Eça chega, ainda se encontrava em Alexandria. Problemas de transporte haviam impedido que fosse transportado para Inglaterra, o que só aconteceria em 1878. Seria então re-erigido em Londres, no Embankment, onde ainda hoje se encontra e onde Eça o poderá ter visto durante os anos em que residiu em Inglaterra.
Como muitos outros, Eça segue para o Cairo já de comboio pois a linha férrea que ligava o Cairo a Alexandria havia sido construída em 1855 (Flaubert e Maxime du Camp ainda haviam viajado de barco). Cremos que terá ficado no Hotel Shepheard’s, o mais luxuoso hotel do Cairo e um dos mais luxuosos do Oriente, embora não haja a certeza pois o texto não é suficientemente explícito.
É no Shepheard’s que encontra Théophile Gautier. O escritor francês havia sido enviado às festas do Suez na qualidade de correspondente do Journal Officiel, no qual publicaria as suas impressões de viagem entre 17 de Fevereiro e 8 de Maio de 1870. Esses artigos seriam republicados no volume II de L’Orient, dado à estampa em 1874 e que Eça poderá ter lido.
Uma vez instalados, Eça e Luís de Resende, tal como os viajantes da época, visitam o Cairo, as pirâmides, Sakhara, Mênfis e outros locais.
Não tendo viajado no Alto Egipto, ao contrário de Flaubert e de outros, os apontamentos queirosianos centram-se no Cairo. As descrições são vibrantes, coloridas, voluptuosas, fixando-se em muitos dos locais turísticos da cidade, geralmente ercorridos pelos viajantes: os bazares, as mesquitas (dedicando todo um capítulo a Al-Azhar), a Cidadela, o bairro copta, o recém-inaugurado museu de Bulak (1863), a nova ópera, onde encontra Auguste Mariette e onde, dois anos mais tarde, Verdi estrearia Aida.
Às ruas do Cairo é dedicado todo um capítulo fantástico de movimento, cor e sensualidade que atesta a qualidade da prosa queirosiana. As descrições centram-se no Muski, a rua estrangeira.
As casas são detalhada e poeticamente descritas com os seus mucharabiehs, balançando-se como que dançando e rindo, atrevidas. Eça poderá ter-se deixado inspirar por Nerval e pela sua Voyage en Orient publicada entre 1840 e 1851. O escritor francês dedica um capítulo às casas do Cairo, por sua vez, em grande parte, retirado de William Lane, que em 1836 publicara An Account of the Manners and Customs of the Modern Egyptians.
Mas, além das casas, também as lojas, os objectos, os tipos humanos desfilam perante o leitor qual personagens de um Oriente exótico. Pelas ruas passam encantadores de serpentes, derwishes, fumadores de ópio, sheiks, profetas, feiticeiros, mulheres dos haréns, eunucos, vendedores de escravos, todo um mundo fantástico das Mil e Uma Noites.
Num texto que deve ter sido muito trabalhado, Eça descreve detalhadamente feições, adereços e vestuário nos seus matizes de cor e na sua variedade de tecidos. Sedas, damascos, caxemira, mantos, turbantes, túnicas, sandálias, tapetes, esteiras, leques, jóias inundam luxuriantemente este capítulo.
Existe um capítulo semelhante dedicado aos bazares, paragem obrigatória dos turistas. Eça visita vários, como o Khan-Khalili (o principal), onde se vendiam panos, vestidos, espadas, sedas, babuchas, bordados. Visita também o Ghoreeyah, onde se encontravam tecidos de lã, de algodão, de cambraia, as sedas, os fez, os tarbuchs, e ainda o bazar dos joalheiros e o das especiarias, cujos produtos enumera: sacos, grãos, pastilhas, frutas secas, pastéis, geleias, noz moscada, tâmaras, canela.
É aqui que diz ter comprado hashish. Era este um tema-cliché das narrativas de viagem. Em 10 de Junho de 1843, Gautier havia publicado um enorme artigo sobre a droga para o jornal La Presse, posteriormente dado à estampa no volume II de L’Orient. Eça poderia conhecer o texto.
Também na linha de outros viajantes, Eça não resiste a descrever um banho turco. Nas suas páginas encontramos ecos, sobretudo, de Nerval, mas também de Flaubert.
Outra temática comum aos viajantes era o harém e a mulher. O harém povoava a imaginação do Ocidente, embora apenas as mulheres viajantes lá pudessem entrar. Os homens escreviam, assim, sobre o que não tinham visto, recorrendo a informação feminina e imaginando o que estaria por detrás de portas que não podiam franquear.
Aos olhos do viajante ocidental, o próprio Oriente em si é visto como um território feminino, um grande harém, simbolizado pelas figuras lendárias de Cleópatra, Salomé e, mesmo, Sheherazade.
Eça não é a alheio a este imaginário, que só conhece através de outrém. Mas, apesar de ter de confessar que nunca entrou num harém, não se coíbe de escrever um longo capítulo comparando o amor no Ocidente e no Oriente.
Uma das suas possíveis fontes poderá ter sido, mais uma vez, Nerval. De novo seguindo Lane de perto, Nerval escreve um longo capítulo intitulado “Les Femmes du Caire”, que inclui vários subcapítulos, um dos quais dedicado aos mistérios do harém. Em 1848, o texto conheceria uma edição especial em livro, este precisamente intitulado Les Femmes du Caire.
Na senda de Nerval, o próprio Eça iria publicar parte das suas notas relativas à mulher oriental. Num artigo intitulado “Fragmento de Viagem do Cairo a Jerusalém”, sairiam em 1871 no Almanaque das Senhoras para 1872. Curiosamente, seria a única parte dos apontamentos de viagem que daria à estampa.
Porém, se o texto queirosiano percorre muitos dos temas comuns aos viajantes inserindo o autor numa moda europeia facilmente reconhecível, existe uma temática que o afasta do mero relato de viagem da época. Referimo-nos às vastas considerações sobre a vida do fellah, o camponês egípcio.
Este capítulo surge sob a forma de diálogo, um diálogo entre um engenheiro do Canal, Eça e Luís de Resende. Reconhece-se aqui uma hábil estratégia para despertar a curiosidade do leitor, manter o seu interesse e conferir verosimilhança à narrativa. Era comum os viajantes inserirem histórias nos seus relatos cortando a monotonia de uma narrativa de primeira pessoa. O exemplo mais notável é, talvez, Nerval que mistura a viagem real com uma viagem imaginária e insere no seu relato variados episódios romanescos com personagens inventadas.
Eça ensaia uma pequena experiência deste tipo. Durante a viagem, terá, decerto, encontrado vários engenheiros do Canal, o que lhe terá servido para a criação desta personagem. O engenheiro do Canal, com quem diz ter travado conhecimento no comboio Alexandria-Cairo é um artifício criado para dar a conhecer as facetas da vida dos fellahin, mas também para lhe permitir exprimir uma dura crítica à exploração do camponês egípcio esmagado pelos impostos, num momento em que o Egipto, endividado ao estrangeiro, explora os mais fracos.
Assim, o engenheiro denuncia as más condições de vida do fellah, vivendo em casebres escuros e desconjuntados, sem condições de higiene e salubridade, trabalhando nos campos como um animal em terras que não são dele, ou mendigando nas ruas do Cairo. Já então o jovem Eça se preocupava com questões sociais, que iriam permear a sua obra.
Após os dias passados no Cairo, Eça e o Conde de Resende apanham o comboio de regresso a Alexandria, de onde sairão num dos 80 navios para assistir às festividades de abertura do Canal. Estas desenrolam-se entre 16 e 20 de Novembro, sendo a cerimónia oficial de abertura no dia 17.
O relato das festas é publicado no Diário de Notícias em quatro artigos datados de 17, 18, 19 e 20 de Janeiro de 1870, ou seja, pouco depois do regresso a Lisboa, que teve lugar em 3 de Janeiro. Crê-se que Eça tenha sido enviado ao Egipto enquanto correspondente do jornal, embora não haja a certeza.
Findas as festividades, os dois companheiros apanham o barco para Jaffa. A viagem iria, então, atingir o auge seguindo o trilho dos viajantes da época: Jerusalém, Belém, Jericó, Nazaré e terminando em Beirute, percurso do qual Eça nos deixou algumas anotações, publicadas por sua filha, no volume Folhas Soltas, em 1966.
Da viagem ao Egipto ficaria não apenas material para a sua ficção, mas, sobretudo, reflexão que iria percorrer os seus escritos não ficcionais, como a série de artigos que escreveria em 1882 para a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro sob o título “Os Ingleses no Egipto”, ou o texto dedicado ao Ultimatum, publicado na Revista de Portugal.
Lidos hoje, o relato da viagem ao Egipto e estes textos revestem-se de particular interesse, dados os recentes acontecimentos da Primavera árabe, que Eça, certamente, seguiria de perto com interesse.
Ser-lhe-ia, no entanto, impossível viajar actualmente na Síria e no Líbano e circularia com reservas no Egipto. Aí já não encontraria o velho Shepheard’s, que arderia em 1952 durante as revoltas anti-britânicas. Quanto ao museu egípcio, seria em 1902 mudado para Tahrir, onde ainda se encontra. O Canal seria nacionalizado por Nasser em 1956.
Mas, nos dias de hoje, já não seria possível dizer que não há nada para ver em Alexandria. Por si só, a nova e extremamente bela Biblioteca Alexandrina, construída em 1995, valeria a pena uma segunda visita à cidade de Alexandre, o Grande, e Cleópatra.
Bibliografia
Eça de Queirós, José Maria, O Egipto. Notas de Viagem, Lisboa, Livros do Brasil, s.d. (na ausência de uma edição crítica, recorremos a este edição, apesar dos erros que apresenta).
Flaubert in Egypt. A Sensibility on Tour. A Narrative Drawn from Gustave Flaubert´s Notes & Letters Translated from the French & Edited by Francis Steegmuller, London, Penguin, 1966.
Gautier, Théophile, L´Orient, 2 vols, Paris, G. Charpentier, Éditeur, vol. II, 1882 (1a ed. 1874).
Nerval, Gérard de, Voyage en Orient. Préface d´André Miquel, Paris, Gallimard, 1998 (1a ed. 1840 e 1851).
Teresa Pinto Coelho