Alemanha no Diário de Miguel Torga

Numa digressão de automóvel pela Europa, iniciada a 22 de Agosto de 1970, Miguel Torga visitou Tubinga, Colónia, Berlim, Nuremberg, Munique e Oberammergau. O primeiro registo acerca desta viagem, presente no Diário XI, tem como referência espacial Tubinga, terra onde faleceu Hölderlin e homenageia este poeta, quando decorre o ano do segundo centenário do seu nascimento. Evidencia-se a admiração e identificação de Torga com esse “Orfeu de carne e osso”, reforçando a ideia do poeta como ser superior, cuja missão é iluminar e transformar o mundo. Por conseguinte, refere-se a Hölderlin como: “Último poeta sinceramente convencido de que a palavra inspirada podia salvar a humanidade, não restava aos deuses, temerosos do milagre, outro caminho senão emudecê-lo.[…] (1999: 1189). Torga celebra em Hölderlin, “o poeta do Estado livre”, um visionário que intervém na sociedade, realizando-se realiza com os outros. Seguidamente, no registo localizado em Colónia, deparamo-nos com uma identificação entre esta realidade e o país de origem, visto que o Reno é apelidado, num poema, de “Doiro feliz da Europa” (1999: 1189). Através da metáfora, verificamos uma apropriação deste elemento da paisagem estrangeira, à qual acresce o adjectivo “feliz” e uma dimensão de grandiosidade, conferida pelo complemento determinativo “da Europa”. Por outro lado, de Berlim, o viajante colhe sobretudo a imagem da “barreira de ódio” representada pelo muro e da burocracia que essa situação acarreta. Nuremberg não corresponde à expectativa do narrador, pois esperava encontrar um local que reflectisse todos os horrores nele vividos e, em lugar disso, depara-se com a imagem “da longa e lenta caminhada do espírito para a eternidade, sugerida no túmulo de S. Sebaldo, assente no dorso de meia dúzia de caracóis.” (1999: 1191). Verificamos, assim, o contraste entre os expectáveis vestígios da violência e crueldade que marcaram este espaço, durante a Segunda Guerra Mundial, e o predomínio de imagens que remetem para ideias de estagnação, monotonia. A imagem da Alemanha é ainda configurada num discurso pronunciado em 1990, no Instituto Alemão, no qual o autor revela a importância da tradução que possibilitou a recepção dos escritores alemães em Portugal. O diarista reitera a sua admiração por Goethe, Hölderlin, Rilke e Thomas Mann que considera “marcos gigantescos erguidos no planalto cultural do planeta”. (1999: 1693-1694). Além disso, Torga evidencia afinidades com Günter Grass, com quem se encontrou pessoalmente, declarando acerca desse primeiro contacto pessoal: “Embora nada o fizesse prever, sintonizámo-nos à primeira vista.” (1999: 1318). Grass e Torga têm em comum também a intervenção nos assuntos sociais dos respectivos países (1999: 1374). . Por outro lado, é salienta-se o interesse manifestado por Torga pelos autores alemães Musil e Broch, nomeadamente, por Der Tod des Vergil e Der Bergroman (Horster, 1991: 161). Em suma, Torga revela admiração pela cultura alemã, nomeadamente pelos escritores supramencionados, mas também pelos músicos como Beethoven e Bach. No entanto, apesar do reconhecimento do valor e de uma certa “supremacia” cultural alemã, o autor não sente uma afinidade particular com este país. Evidencia, pelo contrário, algum distanciamento, tanto nos relatos de viagem, como nos comentários tecidos relativamente à Alemanha e aos seus elementos culturais.

 

Bibliografia: Dora Nunes Gago, “Os rostos da Europa no Diário de Miguel Torga”, in RUAL, Revista de Letras da Universidade de Aveiro, 2013; Maria António Horster, “Torga visto da Alemanha”, in Colóquio/Letras, nº 120, Abril-Junho de 1991; Miguel Torga, Diário, Lisboa, Pub. Dom Quixote, 1999.

 

Dora Nunes Gago