
Decifrando Censuras. Da regulação à produção de inexistências, do arquivo à internet
Segundo as tendências de pesquisa no Google, as palavras “censura” e “censorship” demonstram a importância da sua correlação com redes sociais (Youtube, Twitter, Facebook, etc.) e jovens mulheres famosas (Miley Cyrus, Megan Fox, Emma Watson, Lindsay Lohan no top 20 relativo a 2004-2022). Estes dois grandes temas, a economia e as normas morais, mostram como a censura se mantém como uma questão a enfrentar no presente.
Não são fenómenos novos, quer os aspetos de ordem económica, quer os de ordem moral têm acompanhado o processo de regulação institucional do espaço público e privado, desde que, com a invenção da imprensa, se abandonou a perseguição intermitente dos hereges e se sistematizou o controlo do impresso. Aliás, a perspetiva histórica permite observar a reorganização da metodologia censória que acompanha o desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação: o cinema incentivou o sistema de códigos etários (Robertson 2005), o uso do telegrama e, posteriormente, do telefone permitiu agilizar o controlo exercido por instituições e agentes da censura.
Apesar da censura ser uma manifestação por excelência do exercício do poder, tendo sido historicamente exercida pelos sujeitos que mais peso têm na gestão do espaço público, nos processos económicos e nas instituições políticas (Martin 2016), nas últimas décadas o consenso em torno do significado da palavra censura esvaiu-se (Müller 2004; Moore 2013; Darnton 2014). Esse esboroamento é notório a partir do momento em que, no contexto das Culture Wars, nas décadas de 80 e 90, os académicos liberais americanos, ancorados em abordagens teóricas devedoras do trabalho de Michel Foucault (1978) ou Pierre Bourdieu (1991), demonstraram a existência de fenómenos censórios em contexto democrático (cf. Burt 1994; Post 1998).
As novas abordagens à censura continuam a admitir que o Estado possa exercer um controlo direto (repressão), mas também começaram a identificar o fenómeno censório com o controlo indireto que este pode exercer (através de financiamentos, educação, história pública, etc.) e, sobretudo, começaram a exigir do Estado intervenções diretas de regulação do poder privado que impõe constrangimentos à expressão (Post 1998). Formas de “censura de mercado” que induzem à auto-censura (Jansen 1988) ou políticas como a “don’t ask, don’t tell” que abrangeu os homossexuais no Exército norte-americano, entre 1994-2011, foram englobadas num tipo de apagamento imbuído no tecido estrutural das sociedades (Butler 1998). Este carácter imbuído da censura nas sociedades tomou o nome de censura “constitutiva” ou “estrutural”, por oposição àquela que é exercida por instituições, como o Estado ou a Igreja, isto é, a censura regulatória. Nesse sentido, os fenómenos recentes de “cultura de cancelamento”, de abordagens “woke” à cultura e dos vieses dos algoritmos mostram como o fenómeno é socialmente estruturante.
Torna-se imperativo analisar estes fenómenos para distinguir cientificamente, por um lado, os processos censórios e, por outro lado, os discursos conservadores que – frente à emergência de vozes reivindicando legitimamente novos espaços de comunicação -, instrumentalizam a denúncia de uma dita censura para conservar privilégios e monopólios. Neste sentido, cabe aqui diferenciar boicotes e censuras, que não emergem dos mesmos lugares dentro dos sistemas de poder.
Somos conscientes que a participação numa conferência que pretende fomentar uma abordagem global/internacional ao estudo da censura tem não só implicações inerentes ao estudo do próprio tema, mas constitui também um desafio numa academia que, ao pensar-se global, se encontra materialmente limitada pelas contingências do sistema académico no momento atual, com as suas periferias, pressões sociais e políticas que influenciam a produção e disseminação intelectual.
Oradora/es convidados:
Nicole Moore, University of New South Wales (UNSW), Canberra, Austrália
Robert Darnton, Carl H. Pforzheimer University Professor (Emérito), Harvard University, EUA
Richard Burt, University of Florida, EUA