Viagem a Portugal (José Saramago)

Guia turístico que consiste numa colecção de memórias e crónicas de viagem da autoria de José Saramago* publicada em Março de 1981. A obra foi redigida ao longo de uma viagem por Portugal continental, entre Outubro de 1979 e Julho de 1980, e mistura descrições (por vezes irónicas) das paisagens naturais, humanizadas e etnográficas, bem como  opiniões do autor-viajante. A viagem foi feita a convite do Círculo de Leitores, que comemorava o seu décimo aniversário em Portugal.  Saramago afirmou, no último capítulo da obra, que que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite… É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos”. As várias reedições foram sendo ilustradas por fotografias de diversos fotógrafos e viajantes (Asta, Luís Almeida d’Eça, Adriano Sequeira, José Saramago, Maurício Abreu) e já foi traduzida para diversas línguas como guia turístico. Ao longo da obra, o viajante-narrador fala sobre o acto de viajar:

           Não sei por onde vou, só sei que não vou por aí.

Ninguém é viajante se não for curioso.

O viajante não é turista, é viajante. Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar.

Aos apressados viajantes alfacinhas que em torrente se despejam por estradas marginais, vias rápidas e auto-estradas à procura da felicidade, pergunta este de pouca pressa por que a não vêm buscar aqui (fala das felicidades que as viagens dão, não doutras). 

Viajante competente é aquele que só vai por maus caminhos quando não tem outros, ou razão superior lhe manda que abandone os bons. Não é enfiar pelo primeiro carreiro que lhe apareça, sem verificação nem cautela.

Todo o viajante tem o direito de inventar as suas próprias geografias. Se o não fizer, considere-se mero aprendiz de viagens, ainda muito preso à letra da lição e ao ponteiro do professor.

O viajante não vai de bom humor. Sabe porém o bastante de si próprio para suspeitar que o seu mal nasce de não poder conciliar duas opostas vontades: a de ficar em todos os lugares, a de chegar a todos os lugares.

Viaje segundo um seu projecto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até inventar saídas desacostumadas para o mundo. Não terá melhor viagem. E, se lho pedir a sensibilidade, registe por sua vez o que viu e sentiu , o que disse e ouviu dizer. Enfim, tome este livro como exemplo, nunca como modelo.
A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue as suas flores a quem saiba cuidar delas, e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva.

(…) talvez até se devesse instituir a profissão de viajante, só para gente de muita vocação, muito se engana quem julgar que seria trabalho de pequena responsabilidade, cada quilómetro não vale menos que um ano de vida.  

O viajante tem um gosto, provavelmente considerado mórbido por gente que se gabe de normal e habitual, e que é, dando-lhe a gana ou a disposição de espírito, ir visitar os cemitérios, apreciar a encenação mortuária das memórias, estátuas, lápides eoutras comemorações e de tudo isto tirar a conclusão de que o homem é vaidoso mesmo quando já não tem nenhuma razão para continuar a sê-lo. 

A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: « Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que
mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.

Rogério Miguel Puga