Dentro do Segredo (José Luís Peixoto)

O metafórico título do primeiro relato de viagem de José Luís Peixoto (Dentro do Segredo, 2012) remete para o mistério da Coreia do Norte, destino que o autor visita em Abril de 2012 durante as celebrações do centésimo aniversário de Kim Il-sung, enquanto o subtítulo auto-classificativo (Uma Viagem na Coreia do Norte) remete para a escrita de viagens, tal como a fotografia na capa do livro. O registo da obra assemelha-se ao da crónica de viagens e confere-lhe um cariz também jornalístico. A escrita de viagens é sempre um exercício pessoal, e José Luís Peixoto (JLP) estabelece, desde cedo, um contrato de leitura com o destinatário da obra baseado na subjectividade dos processos pessoais e políticos de textualização da Coreia do Norte. O tema do desrespeito pela proibição do transporte de obras literárias e musicais para a Coreia do Norte pelo viajante estrangeiro é recorrente na literatura ocidental, bastando recordar o romance gráfico canadiano Pyongyang, de Guy Delisle (2003), e um dos primeiros guias sobre o país, de Robert Willoughby (2003), e Three Days in the Hermit Kingdom: An American Visits North Korea, de Eddie Burdick (2010), obras que descrevem experiências idênticas às de JLP. A intertextualidade é, aliás, característica da escrita de viagens. Se o campo semântico dos espectáculos de dança e a ginástica de massas são metáforas visuais que glorificam o regime (65, 118-120), o autor comenta a adjectivação enquanto estratégia literária utilizada na construção de sentidos premeditados, ou seja para influenciar o leitor, detendo-se nos epítetos associados à Coreia do Norte (25). Se o viajante atento ao detalhe chama a atenção para a adjectivação, também ele a utiliza para descrever o regime militar como simulacro absurdo. O humor, a personificação (13, 48, 53, 99) e a ironia servem para comentar e desconstruir a ‘realidade’, sendo a repetição linguística também utilizada para veicular a monotonia mecânica de certos momentos. O viajante começa por se referir ao mundo que lhe é apresentado ou traduzido linguística, cultural e politicamente pelos guias como idealizado e “hipotético”. Trata-se, portanto, de um processo (cumulativo) de representação interpretativa da Coreia do Norte através da análise da ideologia/propaganda oficial sonora e visual fortemente ritualizada. A digressão política na página 120 constitui uma das chaves para a escanção semiótica da obra, pois JLP confessa que “as qualidades humanas dos líderes norte-coreanos” são o aspecto “mais determinante da ideologia do país”, conclusão factual que intensifica a auto-caracterização do autor como interessado e informado. O viajante enriquece o texto-viagem com apontamentos de cariz etnográfico e sociológico (45-46, 51, 66, 132, 150) de forma a conquistar, como ‘narrador’ informado, autoridade para desconstruir estereótipos, nomeadamente o da Coreia do Norte enquanto um dos últimos países comunista e estalinista (46, 120-121). Se as biografias dos líderes norte-coreanos são surreais e se assemelham a hagiografias, a História tem sido utilizada como ficção ou arma política não apenas na Coreia do Norte, mas também pelos japoneses quando invadiram esse país (25) e pelos norte-americanos após manobras de espionagem em 1968 nesse mesmo espaço geopolítico (95).

A representação do percurso de JLP começa in medias res, e a comparação — que enriquece o imaginário e facilita o visualismo —, bem como as paisagens acústica, olfactiva, culinária e etnográfica da Ásia impregnam o texto e revelam o espanto do visitante face ao espectáculo da alteridade, quer encenada quer real, que ele tenta testemunhar, intuir e (foto)grafar. O ‘choque’ inicial e a “sensação de inverosimilhança” (55) em Pyongyang são veiculados pela descrição enumerativa de quadros dinâmicos e do “silêncio absoluto” das imagens, enquanto o Self observa o Outro e se projecta dialecticamente nele, processo que obviamente influencia o viajante-escritor. Já a troca de olhares permite a JLP um contacto mais directo e intenso com os norte-coreanos comuns, e essa empatia visual recorda-o da universalidade da natureza humana. A partilha do medo das alturas no parque de diversões aproxima-o de soldados coreanos, servindo esse espaço lúdico, tal como o do karaoke, para anular mentalmente o simulacro do regime e carnavalizar simbolicamente esse poder através de um outro simulacro: o autor persegue um militar de alta patente nos carrinhos de choque (201-202).

Temáticas como a identidade étnica e cultural, a formação/educação, a liberdade, a dignidade e a natureza humanas, os rituais festivos, os interesses políticos, a viagem intercultural, o confronto pedagógico com o Outro, bem como a abordagem comparatista da “experiência da Ásia” (p. 104) enriquecem o relato que espelha não apenas os aspectos monumentais e políticos do país visitado, mas também os fugazes contactos visuais e físicos directos com esse Outro que se esconde por entre as detalhadas sombras do biombo oriental sem grandes marcas de modernidade que, por sua vez, são (foto)grafadas também através de exercícios pós-modernos. Trata-se, portanto, de uma viagem em torno de segredos políticos expostos, mas também dos que caracterizam cada ser humano, e o excerto redigido em coreano no excipit da obra assim permanece estrategicamente (em-segredo-dentro-do-Segredo) para a maioria dos leitores de língua portuguesa, forçando os mais interessados a viajar, de novo.

 

Bibliografia; José Luís Peixoto, Dentro do Segredo, 2012; Rogério Miguel Puga, “Recensão Crítica: Dentro do Segredo, José Luís Peixoto”, Colóquio Letras, 184, 2013: pp. 261-264.

 

Rogério Miguel Puga